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BA- Quilombos urbanos

Os quilombos funcionaram como áreas onde a liberdade se tornou uma conquista possível para a população negra então escravizada, num desafio ao poder político vigente. Sua herança é tida hoje como reduto rural. Mas ela existe também em grandes centros urbanos como Salvador. Boca do Rio e Curuzu, por exemplo, perpetuam o modelo resistente e solidário típico da matriz quilombola.

Cleidiana ramos

Quando a princesa Isabel, na condição de regente do governo do Brasil, assinou a Lei Áurea, acabava, oficialmente, a escravidão no Brasil. Isso foi em 13 de maio de 1888. Mas, desde 1595, tinha-se notícias dos chamados quilombos, lugares em que os africanos trazidos como escravos e logo depois seus descendentes viviam a vida dos homens livres, sob o manto da clandestinidade, pois eram vistos como um risco à ordem social vigente.

O mais famoso deles – Palmares – caiu em 1694, mas a história dessas organizações não parou por aí. Pelo contrário. Sobrevive até hoje, inclusive em centros urbanos como Salvador. Boca do Rio e Curuzu são exemplos de áreas quilombolas em espaço urbano.

Para entender essa continuidade histórica, vale um mergulho no conceito do que é quilombo. Ele reúne territorialidade, claro, mas também história de resistência e de continuidade da cultura africana que não ficou imune às nuances locais, formando um caldo chamado atualmente de herança afro-brasileira.

“A partir do Decreto 4.887 de 20 de novembro de 2003, assinado pelo presidente da República, podem ser reconhecidas como quilombos as comunidades portadoras de uma tradição de resistência da população negra. É uma noção mais cultural do quilombo que se une também à sua noção de territorialização como espaço de uma continuação genética e cultural”, explica o doutor em história e presidente da Fundação Palmares, Ubiratan Castro. Até então, para que uma área fosse reconhecida como quilombola, era necessário um laudo antropológico.

O conceito mais amplo vem sendo reconhecido aos poucos. Das áreas de Salvador que poderiam se encaixar nessa classificação, nenhuma ainda tem o título de fato. Mas o Curuzu já é definido, oficialmente, como Território Cultural Afro-brasileiro.
“Nós entendemos quilombos também como áreas móveis, que se reagruparam depois, mas que mantêm características muito próprias, como a identidade negra e a solidariedade”, acrescenta Castro.

Essas características se aproximam muito da vivenciada nos terreiros de candomblé. “A organização religiosa chamada candomblé tem uma tradição histórica de acolher quem chega. A própria organização comunitária dessas casas, reunindo várias gerações familiares, lembra a constituição de quilombos. Daí que eles podem ser pistas históricas para conhecermos mais do passado desses territórios”, diz.

Depois da abolição e ao longo da história, o termo quilombo passou a ser utilizado como primazia absoluta de áreas rurais, geralmente afastadas. O reconhecimento delas com a titulação para o seus ocupantes, inclusive, é direito garantido pela Constituição de 1988, ano em que se completaram 100 anos da lei assinada por Isabel.

NÚCLEOS URBANOS – A primeira notícia sobre quilombos que se tem, de acordo com o professor Ubiratan Castro, é de 1595. Trata-se do famoso Palmares, comandado por Zumbi, um dos maiores ícones para o movimento negro brasileiro.

O também doutor em história João Reis explica que a denominação quilombo tem um significado rico e variou ao longo do tempo. “Os quilombos eram uma organização dos grupos étnicos da região do que é hoje o país de Angola. Eles reuniam os africanos desenraizados nas guerras internas. Ao que tudo indica, essa era uma espécie de organização com aspectos militares cujo formato acabou vindo parar no Brasil”, destaca o professor.

A partir da experiência de Palmares, o conceito de quilombo passaria a ser o de uma reunião de escravos refugiados num determinado território e que o defendia militarmente. Nada mais natural. Afinal, essa foi a maior área quilombola de que se tem notícias nas Américas. Muitos estudiosos afirmam que sua população chegou ao patamar de 20 mil habitantes.

Mas nem todos os quilombos estavam completamente isolados da cidade ou reuniam população numerosa. A palavra foi usada em variadas situações. “Há registros antigos onde quilombo é entendido como a reunião de quatro a seis negros vivendo num lugar ermo. Mas essa mesma palavra vai ser usada em outras situações, como em um estudo que faço em Itacaré, onde vivia uma comunidade de lavradores negros que tinha mão-de-obra negra a seu serviço, inclusive escrava”, completa o professor João Reis.

De acordo com ele, muitas vezes as casas dos negros em áreas urbanas eram chamadas quilombos. “Há uma variação de sentidos para a expressão quilombos, daí que não é agressão dar essa definição a áreas que detêm algumas das suas características históricas”, completa.

Por outro lado, quilombos bem próximos da cidade era algo muito comum. Salvador, então cercada por matas, tinha várias áreas quilombolas em seu entorno, principalmente no século XVIII e primeira metade do século XIX.

“Em 1826, houve a revolta do Quilombo do Urubu, que ficava localizado nas imediações do que hoje é Pirajá”, diz Reis. Ele explica que os quilombolas costumavam negociar sua produção nas cidades. Claro que era um comércio clandestino. João Reis conta que existe até um mapa do chamado Quilombo do Buraco do Tatu, que ficava localizado em Itapuã.
Na zona urbana de Salvador, bairros como Saúde, Barroquinha, Engomadeira, Beiru (agora Tancredo Neves), Mata Escura, dentre outros, eram bairros que concentravam uma significativa parcela da população negra. Neles foi se perpetuando a cultura afrodescendente tão dinâmica a ponto de construir um presente que se renova em várias pontes para o futuro. São marcos de resistência traduzidos em experiências como as descritas ao lado.

Preservação em foco na Boca do Rio

katherine funke

Primeira metade do século 19. Da Casa de Pedra, no Jardim de Armação – local considerado o segundo maior depósito de escravos da capital baiana –, foge um grupo de resistência liderado pelo angolano Constâncio Silva e Souza. Fugindo, se escondendo pelo mato, o grupo passou pelo Cabula e outras localidades de Salvador até se instalar na Boca do Rio, na Ladeira do Caxundé.

E lá, até hoje, sobrevivem mais de 100 famílias, todas descendentes dos escravizados, reunidos no Terreiro Unzo de Taata Makweende, liderado até 1934 pelo filho de Constâncio, Gregório Makweende. De nação Angola e origem bantu, o terreiro não inicia pessoas que não sejam consangüíneos de membros do grupo.

Dessa forma, foram preservadas a cultural original e as histórias deste quilombo urbano – título que a comunidade quer receber oficialmente. Mas, infelizmente, ficaram as marcas da miséria dos escravizados libertos pela própria força: fome, desemprego, dificuldades financeiras. Depois de dois séculos, a Ladeira do Caxundé continua a carecer de condições de vida dignas.

Por isso, o reconhecimento da área como quilombo urbano significa muito mais que o título: possibilidade de ter a posse coletiva da terra e recursos para criar projetos de geração de emprego e renda, segundo taata Raimundo Konmannanjy, presidente da Associação Cultural de Preservação do Patrimônio Bantu (Acbantu). O processo está em andamento.

Técnicos do governo federal já visitaram a comunidade.

Curuzu prova que sonho da inclusão negra é realidade

Terreiro de candomblé é uma pista forte para se descobrir um quilombo. Nele se percebe um forte sentimento comunitário. Dentro desse espaço religioso é comum a existência de casas no entorno do espaço de culto. Foi num cenário desse tipo que começou uma das mais belas histórias de resistência em Salvador: o Ilê Aiyê. Da casa comandada por Mãe Hilda surgiu um bloco afro no Curuzu, pedacinho do bairro da Liberdade. Três décadas depois, essa associação com origem carnavalesca se transformou numa usina de ações de inclusão da população negra na cidade.

Sob o comando de Antônio Carlos dos Santos, ou melhor, Vovô do Ilê, a entidade tornou-se o ponto de partida de projetos educacionais, como a Escola Mãe Hilda e a Banda Erê, que unem aprendizagem de música e promoção da cidadania. Além disso, têm iniciativas no campo de geração de emprego e renda, como o programa Cozinha da Cidade, voltado para a área de culinária típica, o de fabricação de instrumentos de percussão, capacitação em estética, entre outros.

Além disso, o Ilê participa do projeto do Corredor Cultural, que vai incluir a Liberdade na rota da mais importante área econômica de Salvador: a atividade turística. Não é à toa que o berço do Ilê é reconhecido pelo governo federal como Território Cultural Afro-brasileiro.

TRADIÇÕES – “O Curuzu sempre foi uma lugar de efervescência cultural. Estamos também revivendo outras tradições, como o baile pastoril e a burrinha”, enumera Vovô. Ele fala com o conhecimento de causa de quem vive no Curuzu há 52 anos. “Eu nasci e sempre morei aqui”. Filho de Mãe Hilda, Vovô sempre destaca a importância que sua mãe teve na formação do Ilê e que em todo Carnaval fica mais patente, afinal o desfile só começa depois de um ritual religioso comandado pela sacerdotisa.

A professora Arany Santana foi a primeira titular da Secretaria Municipal da Reparação (Semur), criada há dois anos. Membro da diretoria do Ilê, ela destaca essa relação entre o terreiro como ponto de partida para uma história de resistência. “Eu morava na Caixa d’Água, mas não saía de lá do Curuzu, e era impressionante como a gente sempre encontrava acolhimento no terreiro de Mãe Hilda. As portas de lá estavam sempre abertas. Tinha a naturalidade e a ajuda mútua própria dos quilombos”, completa.

Segundo Arany, não é de surpreender que o Ilê acontecesse no Curuzu. “Sempre vivenciamos ali um sentimento muito forte de irmandade. E o Ilê soube manter isso, sem perder seus fortes laços comunitários, o que faz do Curuzu um lugar referência quando o assunto é a resistência da cultura negra”, acrescenta. (C.R.)

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