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RJ – Vila Cruzeiro tem origem no Quilombo da Penha

A liberdade dos negros tinha endereço certo na Zona Norte do Rio no século 19: as encostas dos morros da Penha. Era para lá que os escravos foragidos corriam e ganhavam abrigo sob a proteção de um padre abolicionista. Livres, eles começaram a ocupar a área que deu origem a duas comunidades: Vila Cruzeiro e Parque Proletário. Hoje, o predomínio dos afro-descendentes está presente em toda parte: no samba, no futebol e até nos salões de beleza.

Apesar da falta de informações mais precisas, pode-se estimar que boa parte dos 70 mil residentes de Vila Cruzeiro e Parque Proletário (segundo estimava da associação de moradores) sejam negros.

A maioria, no entanto, desconhece as origens dessa história, que se confunde com a formação das próprias comunidades. Não sabem, por exemplo, que o surgimento da Vila Cruzeiro – que posteriormente teria dado origem ao Parque Proletário – estaria ligado à abolição dos escravos.

Padre acolhia escravos, diz Alberto.

Vários lances dessa história foram levantados pelo jornalista Alberto Barbosa, que vem publicando curiosidades sobre as origens do bairro da Penha pinçadas de publicações da época e do acervo do falecido historiador João Lima, pesquisador local. Os dados estão em reportagens publicadas no jornal A Voz da Penha, de Alberto.

“Em finais do século 19, um certo padre Ricardo, republicano e abolicionista, capelão da irmandade da Penha, costumava abrigar em sua casa escravos fugidos das redondezas. O lugar terminou conhecido como Quilombo da Penha”, diz Alberto.

Tião Nogueira, morador antigo que está na casa dos 90 anos mais prefere esconder a idade, não pegou esses primórdios. Mas se emociona ao lembrar a chegada de sua família à comunidade. Neto de escravos, Tião chegou à Vila Cruzeiro ainda criança, quando o pai, estivador do Cais do Porto, teve que se mudar do Centro da cidade.

“Viemos para a então Vila Proletária. Era ainda lugar de difícil acesso, cheio de pedras e muito matagal”, lembra.

Princesa visitou a Penha

Depois da abolição, que aconteceria 18 dias depois de uma visita da Princesa Isabel à famosa igreja do bairro da Penha – “para pedir, de público, graças e força para acabar com a escravidão no Brasil”, segundo os jornais da época -, os escravos livres e sem ter para onde ir, foram ocupando as terras de menor valor pertencentes à igreja.

“Até pela atuação do padre Ricardo, havia uma permissão não oficial para que ocupassem as áreas de encosta. Ali também eles tinham certa proteção e a certeza de que ninguém os removeria”, fala o jornalista Alberto.

Maria do Campo (C): associação criada para o futebol

Nessas encostas do morro da Penha foram crescendo não só a Vila Cruzeiro e o Parque Proletário da Penha, mas também as outras nove comunidades do bairro.

Até hoje, toda a área ainda pertence à irmandade religiosa.

Alberto conta ainda que expressões da cultura negra sempre foram fortes na Penha e em suas comunidades. “A capoeira continua sendo tradicional desde o século 19 até hoje. E um dos grupos mais fortes de Folia de Reis na cidade, que saía nos anos 50, era daqui da região, entre Vila Cruzeiro e Merindiba.”

Quem também vê confirmada essa forte predominância de afro-descendentes na região é a vice-presidente da escola mirim Petizes da Penha, Patricia dos Santos, 25 anos. “Basta olhar os integrantes da minha bateria, que ainda conserva essas origens. Só tem uns dois brancos, entre os 30 integrantes”, afirma. Segundo Patrícia, isso só reflete a composição da própria população da favela.

“Por isso considero a minha como a bateria raça. Aliás, na escola mirim inteira, o negro também é maioria. Todo mundo é da raça”, fala Patrícia. Os ensaios do Petizes da Penha acontecem na sede do Atlético Clube Ordem e Progresso, na estrada José Rucas, a principal da Vila Cruzeiro.

A agremiação, por sinal, sempre teve importância fundamental na vida da favela. Como conta a dona-de-casa Maria Antônia do Nascimento, mais conhecida como Maria do Campo, que, com seus mais de 90 anos, foi uma das primeiras moradoras dali: “Como aqui não tinha nada, não existia nenhuma forma de lazer, o pessoal resolveu criar a associação, nos anos 50″, diz.

Essa associação, na verdade, funcionava em torno dos jogos de futebol.

Cemitério de negros

Dentinho (de barba e jogando): 58 anos de Penha Alcino de Oliveira, a quem todos conhecem como mestre Dentinho, lembra bem desses tempos difíceis. Ele chegou à Vila Cruzeiro há 58 anos, vindo de Cachoeira do Itapemirim, no Espírito Santo. “Não havia água, luz ou qualquer tipo de saneamento básico. Era uma pobreza terrível e não havia como plantar nada porque o local era cheio de pedras”, conta.

Naquela época, Dentinho ouvia dizer que bem próximo de onde hoje é o campo do Ordem e Progresso existia um cemitério onde os negros eram enterrados.

“Dizem que não se permitia que quem morasse aqui fosse enterrado em outro lugar”, fala. Mais tarde, no entanto, com o crescimento da população, todo o espaço foi sendo ocupado por novas famílias.

“Quem teve a iniciativa de criar o campo, pegando no pesado para ajeitar o terreno do lote que cedi a eles, foi Sebastião Benedito, outro dos moradores antigos”, lembra Dona Maria.

Seu Benedito deu forma ao campo para que o time Filhos da Vila – formado por seus filhos e sobrinhos, todos negros – tivesse onde jogar. “A outra equipe, o Ordem e Progresso, também tinha no máximo dois mulatos. Eram os dois times locais”, conta Dona Maria. Além dos jogos, o Ordem e Progresso organiza também piqueniques, excursões e churrascos. “E isso eles fazem até hoje”, diz.

Tia Ciata: samba na festa da Penha

De olho nessa grande massa de moradores negros, as irmãs Maria Valéria da Silva, de 37 anos, e Maria Vanderléia da Silva, de 36, abriram em 1995 o salão Afro Hair Unissex, no centro da comunidade, onde moram.

“Essa presença é muito nítida na Vila Cruzeiro. Basta ir às ruas, passar pelos becos, ir à Praça São Lucas, ou assistir aos jogos de futebol no campo do Ordem e Progresso nos finais de semana”, diz Maria Valéria, que trocou o diploma em Geografia pelo salão.

Valéria (E) e Vanderléia (D) perceberam a demanda e montaram salão afro que vive lotado

Mesmo sem saber explicar, como a maioria dos habitantes da área, os porquês dessa concentração, elas logo viram o bom mercado que havia para o seu negócio. “Não existia aqui nenhum salão voltado para cuidar de cabelos afro. Por isso resolvemos investir”, contam.

Expectativa plenamente compensada. Entre tranças nagô, implantes, relaxamentos e outros tratamentos específicos, o salão nunca está vazio.

“Sábado, então, isso aqui fica uma loucura. Nestes anos todos, tem sido lucrativo”, dizem.

Para Alberto, outra pista dessa forte presença negra podia ser observada também nas festas da Penha, realizadas em outubro. “Jornais de 1906 falam que o samba teria sido proibido na festa – o que nos mostra a grande dimensão da parte popular do evento, que depois da inauguração da linha de trem, atraía mais de 120 mil romeiros”, conta.

No ano seguinte, porém, devido à pressão popular, o samba voltou a ser permitido, sem instrumentos. “Dizem que vem daí o hábito de se acompanhar a melodia com palmas ou batendo em garrafas”, explica.

Bizuca se orgulha da maioria da população ser negra Além dos eventos religiosos, os festejos populares também concentravam tanto a população
local quanto romeiros e artistas vindos de todos os cantos da cidade. “Uma das barraqueiras mais procuradas durante a festa era a Tia Ciata. Não só por seus quitutes, mas por ser considerada uma das grandes incentivadoras dos primórdios do samba. Era em sua barraca que havia música e dança”, conta Alberto.

A ponto de a festa – e a barraca de Tia Ciata – ser termômetro de receptividade popular e para artistas da época, principalmente aqueles em
início de carreira, testarem composições novas.

“Dizem que Pelo Telefone, de Donga, considerado o primeiro samba gravado, em 1917, foi lançado na festa da Penha, provavelmente na barraca da Tia Ciata”, acrescenta o jornalista.

A presidente da Associação de Mulheres da Penha, Jussara Raimundo, de 47 anos, já ouviu algumas dessas histórias antigas. Mais conhecida como Bizuca, ela se orgulha em saber que é negra a maior parte da população local. “Só lamento que os jovens não saibam dessas origens nem tenham este tipo de informação”, resume.

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