Teólogas e teólogos têm alertado há muito tempo sobre os reclames da terra explorada.
por Magali Cunha
O dia 5 de junho tem passado despercebido a cada ano – vivemos uma moda de se estabelecer dia para tudo, do abraço ao DNA. É uma antiga data muito significativa do calendário, por destacar a importância do meio ambiente, fonte de vida e saúde para todos que habitam o planeta Terra.
Em 2021, muito especialmente, com a tragédia da covid-19, o sinal amarelo que o meio ambiente dá para a humanidade se amplia. Temos, não apenas que conviver com a pandemia e sobreviver a ela, mas de forma, cada vez mais urgente, refletir sobre estes tempos terríveis que nos levem a atitudes de superação com vistas não apenas a resolver o presente, mas a construir um futuro sustentável.
Há um texto belíssimo do apóstolo Paulo, no Novo Testamento da Bíblia cristã, uma das últimas cartas que escreveu, dirigida aos cristãos que estavam em Roma, que diz:
Porque sabemos que toda a criação, a um só tempo, geme e suporta angústias até agora. E não somente ela, mas também nós, que temos as primícias do Espírito, igualmente gememos em nosso íntimo, aguardando a adoção de filhos, a redenção do nosso corpo. Porque, na esperança, fomos salvos. Ora, esperança que se vê não é esperança; pois o que alguém vê, como o espera? (Carta aos Romanos 8.22-24).
Paulo se refere à criação de Deus, a terra habitada, dizendo que ela geme, sofre angústias, e com ela todas as pessoas que a habitam. Naquele tempo, vivia-se a opressão e a exploração do Império Romano. Hoje, é o império do capital e dos que dele se alimentam que oprime e explora a criação.
Teólogas e teólogos têm alertado há muito tempo sobre os gemidos da terra explorada. Alertam que os seres humanos, apesar de serem portadores de um chamado divino para cuidarem e guardarem o Eden, símbolo maior da integridade da Criação de Deus, desprezaram e negligenciaram essa tarefa. Os homens se tornaram a própria ameaça da Terra, nossa Casa Comum, por meio da exploração abusiva dos seus recursos, do maltrato ao seres não-humanos e do descaso com os seus iguais. Isto representou a consolidação de um modelo de vida baseado na cobiça, na competição e no consumo sem medida, no lucro gerador de injustiça e ausência de paz.
Cientistas explicam que as pandemias estão conectadas a estas questões ecológicas. Epidemias virais sempre surgem na relação da sociedade humana com a vida selvagem, de uma dominação de humanos sobre animais. O coronavírus, portanto, está no centro das discussões sobre a vida, o presente e o futuro.
Este clamor pela justiça, pela paz e pela integridade da Criação tem ecoado há décadas como uma preocupação que deveria estar nos primeiros lugares das prioridades das igrejas cristãs.
Desde os anos 1960, o Conselho Mundial de Igrejas (CMI) dialoga sobre o tema e criou, na década seguinte, o programa “Por uma Sociedade Justa, Participativa e Sustentável” com ênfase na participação e na sustentabilidade. O tema do cuidado com a Criação foi destacado na 6ª Assembleia do CMI (Canadá, 1983), quando foi estabelecido o “Processo Justiça, Paz e Integridade da Criação” (JPIC), e a questão ambiental foi definitiva e integralmente incorporada à preocupação e às ações ecumênicas nos processos de desenvolvimento.
Desde os seus primórdios no século 20, o movimento ecumênico, que atua pela ação conjunta das igrejas, já enfatizava em suas ações as noções de paz e justiça. Atravessando guerras mundiais e conflitos localizados, defrontando-se com buscas humanitárias intensas, o movimento ecumênico foi aprendendo que justiça e paz são elementos inseparáveis e deveriam estar na raiz de todo testemunho cristão neste mundo. Foi a partir dos anos 1970, com o conceito de comunidades sustentáveis, que ajudou a construir, que o CMI trouxe as noções inseparáveis de justiça e paz para a relação com o meio ambiente, atribuindo-lhe o conceito teológico da Criação.
A dimensão da justiça, paz e integridade da criação tornou-se espaço privilegiado nas ações do CMI. O organismo ecumênico reconhece que os impactos ambientais são históricos na trajetória da humanidade, mas a Casa Comum vive um momento mais grave do que nunca. Um novo e grande mal que afeta a Criação é a cultura global do consumo exacerbado, amplamente vivido e estimulado por e para países ricos e países pobres. A vida, na sua integralidade, vem sendo afetada por isto. O documento “AGAPE (Alternative Globalization Addressing Peoples and Earth [Globalização Alternativa Dirigida aos Povos e à Terra]) – Um chamado ao amor e à ação”, de 2005, já aprofundava este aspecto do contexto global.
A proclamação da Encíclica Laudato Si’ – “Sobre o cuidado da casa comum” –, do Papa Francisco, em junho de 2015, se coloca no contexto desta história da busca ecumênica pelo cuidado e a guarda da casa comum. Ela se coloca na forma de um eco que torna possível a amplificação das vozes e escritos produzidos ao longo das décadas anteriores. Várias afirmações da Encíclica Laudato Si’ estão em sintonia com estas perspectivas.
As palavras de Francisco são enfáticas quanto à perversidade do sistema que rege o mundo hoje. O capitalismo globalizado é reconhecido como um processo perverso para o meio ambiente, por meio de amplo caminho para a exploração e menos espaço para a solidariedade. As igrejas são chamadas a agir unidas para transformar a injustiça econômica.
O que estamos vivendo em 2021 é um forte sinal das ameaças intensas ao meio ambiente em várias frentes. Tanto a pandemia sinaliza isto quanto as ações destrutivas de governos, como o do Brasil, na figura do Ministro do Meio Ambiente Ricardo Salles, que, nitidamente, atua pelos interesses de mineradoras, madeireiras, do agronegócio na destruição dos recursos e das vidas da Casa Comum em prol da exploração e do lucro.
Por isso, este precisa ser um tempo de oportunidade, de redenção e esperança, como escreve o apóstolo Paulo, no texto citado no início deste artigo.
Oportunidade de se pensar um mundo ecológico e justo organizado em torno do cuidado, não centrado nos humanos, mas que busque a harmonia de todos os seres que habitam a mesma Terra, Casa Comum.
Oportunidade de se retomar a dimensão da coletividade e do cuidado de uns com os outros, superando-se o individualismo e o egoísmo de uma sociedade centrada na competição e no lucro, muitas vezes propagados dentro das próprias igrejas, em gritante contradição. Por isso, é também oportunidade de elas se arrependerem disto e do silêncio e da omissão diante dos agentes da morte em franca atuação.
Se partirmos destes princípios básicos de coexistência, dá para ter esperança de que sobreviveremos para fazermos um outro mundo possível.
Magali Cunha é Jornalista e doutora em Ciências da Comunicação. É colaboradora do Conselho Mundial de Igrejas.
Publicado originalmente em Carta Capital – Diálogos da Fé