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Assassinato de quilombola, intimidações e manobras políticas marcam expansão da soja no Pará

Por Antônio Carlos

 

“Agora que Bolsonaro ganhou quero ver se ainda vai ter benefício para pretos”. A frase, gritada da janela de uma caminhonete para uma liderança quilombola, reflete o clima tenso que domina o Planalto Santareno, no Pará. Às margens do rio Amazonas, a região abriga pelo menos dez comunidades indígenas e quilombolas e um crescente número de fazendeiros e produtores de soja que se enfrentam em uma disputa por territórios. A região vem ganhando o noticiário nos últimos meses, mas não por causa dos “benefícios” esbravejados pelo dono da caminhonete.

Em setembro, um quilombola foi brutalmente assassinado a golpes de chave de fenda. Em novembro,  membros da Comissão Interamericana de Direitos Humanos da Organização dos Estados Americanos (OEA) sentiram-se intimidados ao visitar a comunidade indígena de Açaizal. Em dezembro, a Câmara de Vereadores de Santarém votou o plano diretor do município, com manobras de última hora, abrindo caminho para a construção de um controverso porto na cidade que vai ampliar o escoamento da soja, mas que gera impactos para as comunidades quilombolas e indígenas do local.

Os episódios, que parecem casos isolados, têm um elo em comum: fazendeiros e produtores de soja, reunidos em torno do Sindicato Rural de Santarém (Sirsan) e fortalecidos no último ano não apenas pela vitória de Jair Bolsonaro – contrário à demarcação de terras indígenas e quilombolas –, mas também pela contratação do polêmico antropólogo Edward Luz, conhecido como “antropólogo dos ruralistas” e recentemente cotado para assumir o segundo cargo mais importante da Funai.

Luz parece assumir a frente dos interesses dos empresários rurais da região, atuando ativamente não só na elaboração de laudos que questionam os territórios das comunidades tradicionais do local, mas também atrapalhando a visita de organizações deslocadas para ouvir a população local – como foi o caso da OEA.

No episódio, ele seguiu a comitiva na estrada, apontou uma câmera para o grupo e disse: “ONGs usam as minorias étnicas contra nossa capacidade produtiva. Isso está prestes a acabar, ano que vem teremos um novo presidente”.  A organização emitiu nota sobre o ocorrido, declarando-se intimidada. O antropólogo nega que tenha causado tumulto e afirma que queria apenas dialogar. “Queríamos só dizer à OEA que aquela não era uma comunidade indígena”, afirmou em entrevista à Repórter Brasil.

Os argumentos de Luz refletem de modo direto os interesses dos empresários rurais, de quem é contratado como prestador de serviços, e já são velhos conhecidos entre as populações tradicionais da região. O antropólogo defende a tese de que essas comunidades são manipuladas por ONGs e se autodeclaram indígenas ou quilombolas de forma fraudulenta.

Devido à “postura não compatível com a ética profissional” e por atuar “em direta sintonia com os interesses das redes políticas das quais participa”, a Associação Brasileira de Antropólogos o expulsou do grupo em janeiro de 2013.

Sua próxima missão no Oeste do Pará será contestar o reconhecimento, feito pelo Incra em outubro do ano passado, de que a comunidade do Tiningu é quilombola. “Uma coisa é ser afro-descendente, outra é ser descendente de quilombola”, diz Luz. Quando questionado se o Incra, órgão do governo federal, se equivoca nesses reconhecimentos, Luz afirma que sim por conta da “ditadura do politicamente correto”.

Mais do que negar a existência dessas comunidades, o que Luz tem feito no Oeste do Pará é articular e fortalecer os fazendeiros e produtores de soja. Nesse sentido, ele é bem sucedido na tarefa. As impressões digitais do antropólogo estão por trás tanto do tumulto com a OEA quanto da controversa articulação dos vereadores para a mudança no plano diretor para possibilitar a criação de um porto de soja na cidade.

A manobra para a aprovação do porto Maicá

Foi após reunião com os membros do Sirsan, o sindicato que representa os produtores rurais da cidade, que os vereadores decidiram aprovar uma significativa mudança no Plano Diretor de Santarém. Os vereadores contrariaram decisão popular de um ano antes, quando  as comunidades tradicionais afetadas manifestaram-se contra o porto em assembleias.

Um dos articuladores do encontro foi o antropólogo Edward Luz, como ele mesmo reconhece: “Não só participei, como promovi a reunião. Fui lá e apresentei aos parlamentares o resultado da minha pesquisa, que indica uma articulação étnica espúria por cidadãos que se dizem indígenas e quilombolas”. Ele chegou a dizer a um dos vereadores que não queria uma “guerra étnica” na região.

O novo plano diretor foi sancionado pelo prefeito de Santarém em 17 de dezembro, às vésperas do Natal. A construção do Porto de Maicá, porém, ainda depende de licenciamentos ambientais – que estão suspensos por decisão da Justiça Federal até que haja uma consulta às comunidades tradicionais que vivem ali.

Previsto para ser construído às margens do rio Amazonas, o porto é de interesse dos produtores de soja porque ajudaria a escoar o grão para o exterior. O problema é que pelo menos sete comunidades indígenas e quilombolas dependem do rio para sobreviver.

A aprovação do Plano Diretor deixou evidente os lados em disputa na região: “Com essa aprovação, vêm novos tempos para nossa cidade”, comemorou Adriano Maraschin, o presidente do sindicato rural.

Já o cacique Manuel Munduruku estava indignado em ato realizado em Santarém no dia 20 de dezembro: “Tem que construir esse porto perto da casa do prefeito para ele começar a entender o que é impacto, porque nós sabemos o que é impacto”.

Assassinato a chave de fenda

Contratante de Luz em outros casos, o presidente do Sindicato Rural de Santarém, Maraschin, tem interesse pessoal na disputa por terras no Planalto Santareno. Pelo menos três fazendas em nome de seus parentes têm território que se sobrepõe às terras reivindicadas pelos indígenas Munduruku, vizinhos ao quilombo Tiningu. São as fazendas Bom Futuro, Campo Verde e Santa Maria, todas em nome de membros da família Maraschin, segundo dados do Cadastro Ambiental Rural.

Mas Maraschin não é o único personagem que reivindica terras em territórios indígenas ou quilombolas por ali. No Tiningu, o fazendeiro Silvio Tadeu dos Santos construiu uma cerca de arame farpado sobre a lavoura de um quilombola e passou a se declarar dono daquela terra. Desde então, o conflito se acirra a tal ponto que começou a deixar vítimas fatais.

Primeiro, Santos começou a desligar o sistema de abastecimento de água construído pela comunidade há mais de 20 anos. Depois, o fazendeiro também teria destruído o roçado de Flaviano Santana, um dos moradores mais velhos do quilombo, borrifando agrotóxicos sobre a plantação, segundo boletim de ocorrência registrado pela comunidade.

O clima esquentou na comunidade, que passou a vivenciar ameaças até culminar no assassinato do quilombola Haroldo Betcel com golpes de chave de fenda em 29 de setembro. “Haroldo tinha sido jogador profissional de futebol e treinava nosso time, ensinava as crianças. Era uma grande liderança e não aceitava as ameaças que a gente sofria”, conta Raimundo Benedito da Silva, presidente da associação comunitária do Tiningu, conhecido como Bena.

Para a polícia civil, não há dúvidas de que o caseiro de Silvio Tadeu é o assassino de Haroldo. O caseiro, identificado apenas como Doriédson, está foragido com mandado de prisão em aberto, de acordo com o delegado da homicídios em Santarém, Dmitri Esmeraldo.

O delegado, porém, refuta a hipótese de que o fazendeiro seja o mandante do crime e rechaça a possibilidade de que o assassinato seja fruto do conflito por terras. Ele afirma que o caso não foi levado à delegacia especializada em conflitos agrários e que desconhece as ameaças sofridas pela comunidade. “Essas denúncias de ameaças têm que ser levadas à outra delegacia, aqui só cuidamos de homicídios”, explicou à Repórter Brasil.

Repórter Brasil não conseguiu contato com o fazendeiro Sílvio Tadeu.

Encurralados pela soja

Enquanto os ruralistas comemoram a aprovação do Plano Diretor e Edward Luz é cotado para a Funai, as comunidades indígenas e quilombolas se assustam com o fortalecimento dos grupos que ameaçam os seus territórios.

“Eles falam que o povo daqui é preguiçoso, que aqui não tem quilombola, que não tem índio”, diz Raimundo Benedito da Silva, presidente da associação comunitária do Tiningu, carregando um peso no olhar. “Em 1844, seis escravos fugiram de uma senzala e vieram para cá. Todos somos descendentes desses fugitivos”.

Apesar de ter sido reconhecido pelo Incra, o quilombo, que abriga cerca de 500 pessoas, ainda depende da assinatura do presidente da República para ser homologado. Algo que pode nunca acontecer, se Jair Bolsonaro seguir suas promessas de campanha.

Segurando com força a cerca de arame farpado erguida pelo fazendeiro Sílvio Tadeu em território quilombola, Bena diz que a expansão da soja tem complicado a vida das comunidades tradicionais do Planalto Santareno.

“Hoje é só soja em Santarém. As áreas onde antes tinha agricultura acabaram. Tem comunidades que ficaram presas, porque o agrotóxico acaba com as nossas criações e prejudica nosso peixe, nosso açaí, nossa saúde”, diz a liderança comunitária.

Ele fica triste com as acusações que vem escutando do antropólogo e de fazendeiros. “A eleição do Bolsonaro é uma preocupação muito grande pra gente e para os indígenas.” Além de poder não reconhecer territórios dessas comunidades, a vitória do candidato de extrema-direita inflamou os fazendeiros, produtores de soja e o antropólogo Edward Luz, que diz não ter prazo para sair do Planalto Santareno. Bena, porém, promete não ficar acuado. Se o Oeste do Pará avança rumo a uma guerra étnica, os quilombolas do Tiningu dizem estar preparados para o conflito.

Esta reportagem foi realizada com o apoio da DGB Bildungswerk

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