Quilombolas perdem identidade cultural e religiosa
Encontrar a comunidade quilombola de Tabacaria não é tarefa das mais fáceis. Para chegar ao povoado, encrustado entre as serras de Palmeira dos Índios, é preciso perseverança e uma coluna em dia: são pelo menos dez quilômetros de estrada de barro adentro, em meio a buracos, ladeiras, mato e precipícios. A sinalização indicando a presença dos remanescentes de quilombo é também inexistente.
A situação é a mesma em diversas outras populações do tipo espalhadas por Alagoas, escondidas em meio à caatinga, morros e ao descaso. Nada disso, porém, parece impedir grupos religiosos, em especial evangélicos, de descobrir esses lugares. E de se instalar neles, coibindo, na opinião de estudiosos como o professor Clébio Araújo, manifestações até então enraizadas desde o tempo dos escravos.
"Em geral, esse aumento da presença evangélica tem tido impactos diretos na identidade coletiva dessas comunidades, pois ela apresenta um alto grau de intolerância em relação às culturas de matriz africana em suas várias expressões, principalmente aquelas que rementem mais diretamente a elementos estéticos das religiões afro-brasileiras, como a música, a dança e o vestuário", afirma.
E a chegada desses religiosos, aponta ele, tem sido algo cada vez mais constante. Em Tabacaria, por exemplo, é possível já avistar de longe, logo na chegada, a Assembleia de Deus fundada há cinco anos, o maior prédio da localidade. Dentre os cerca de 400 moradores, uma média de 70 a 80 participa das atividades, que incluem cultos, grupos de oração, ensaios musicais.
Presidente da comunidade, Amaro Félix Filho diz que a igreja – construída dentro da propriedade dele – não interfere negativamente no dia a dia dos quilombolas. Pelo contrário: para ele, a chegada dos evangélicos foi uma salvação. "As pessoas ficavam se destruindo em portas de bares e bodegas, fazendo o que não deviam. E hoje temos jovens louvando a Deus, glorificando, e a igreja crescendo por intermédio disso".
Foi a esposa dele, aliás, que pediu para que o templo se instalasse ali. Até então, era preciso ir para o centro de Palmeira dos Índios para escutar a pregação. Com a dificuldade do acesso, conta ele, era necessário sair no sábado e voltar apenas na segunda pela manhã – aos domingos, dia mais importante no calendário da denominação assembleiana, não há transporte no povoado.
"Ela pediu lá na Assembleia para fazer uma congregação aqui, que não tinha nada a não ser bodega de cachaça. Eles disseram que não poderia ser logo, que iriam ver, e uns quatro anos atrás veio um irmão fazer uma vistoria no terreno para a construção. Os irmãos participaram com mão de obra; outros compraram material. Hoje, graças a Deus, ela está funcionando para o nosso bem", lembra Amaro.
Ao todo, a construção levou cerca de um ano e meio para ser levantada e, agora, o pastor vai ao local às quintas e aos domingos. Segundo o presidente, a convivência entre o pensamento evangélico e as tradições quilombolas tem sido tranquila. Ele cita o livre-arbítrio como princípio ali dentro: na visão do líder, cada um é livre para fazer – e praticar – o que quiser.
"Na época de São João, fundaram uma quadrilha, brincaram o São João todo. Temos um reisado também, que brinca sempre aí. Eu não participo porque não gosto, cada um frequenta o que quer. É o livre-arbítrio. Quem quer vir para a igreja, vem para a igreja; quem quer participar do reisado, participa do reisado; quem quer ser da banda de pífano, é da banda de pífano, e assim está funcionando", acrescenta.
Responsável pela manutenção dos agora já escassos folguedos de Tabacaria, dona Dominícia Paulino dos Santos, 63 anos, relata que a relação tem sido tranquila. "Pra mim, tanto faz, está tudo bem. Não tenho o que dizer da igreja. Não sou crente, mas toda a vida gostei deles. Não sou porque eu curo, desde pequena gosto de curar criança, adulto, então não posso, porque eles não permitem isso".
O reisado tocado por ela em parceria com o marido, seu Gerson, já chega aos 350 anos e começou ainda com os antepassados da família. São 16 participantes e uma nova geração também vem se interessando – 12 crianças ensaiam para ingressar no grupo. Mesmo dizendo não sentir um preconceito escancarado, a matriarca revela que é preciso lutar para continuar levando a brincadeira adiante.