• (21) 3042-6445
  • comunica@koinonia.org.br
  • Rua Santo Amaro, 129 - RJ

Relatório Técnico de Identificação Territorial: Comunidade Remanescente de Quilombo do Alto da Serra

Introdução e Capítulo 1

Capítulo 2

Capítulo 3

Capítulo 4

Capítulo 5

Capítulo 6

Capítulo 7

ANEXOS: imagens

Introdução

 “Cada um é do seu jeito”, foi o modo como Isaías explicou sua identidade quilombola em um encontro ecumênico. Isaías Leite é um jovem trabalhador rural de 25 anos, negro, evangélico ortodoxo, presidente da Associação de Trabalhadores Rurais do Alto da Serra, entidade que agrega a comunidade negra que assume o mesmo nome. Na ocasião, ele compunha uma mesa sobre comunidades quilombolas do Rio de Janeiro e do Espírito Santo, representando as comunidades negras rurais de seu estado na Jornada Ecumênica Sudeste de Koinonia[1]. Na platéia, lideranças religiosas do candomblé, antropólogos, padres e pastores ecumênicos. Isaías falou da luta de sua comunidade pela posse da terra, das diversas formas de assédio do grileiro, do processo de organização do grupo, do contato com atores do mundo do direito e da sociedade civil e da discussão acerca do reconhecimento como remanescente de quilombo. Não falou de costumes dos antigos, de tradições de matriz africana ou de uma identidade vinculada a qualquer tipo de resgate cultural, elementos discursivos presentes na percepção de senso comum acerca da “identidade quilombola”. Atento a tudo que via e ouvia, e questionado por um de seus ouvintes sobre a (im)possibilidade de os membros de sua comunidade, na maioria evangélicos assembleianos, se identificarem como remanescentes de quilombos, Isaías não titubeou: “cada um é do seu jeito”.

A comunidade remanescente de quilombo de Alto da Serra é formada por 17 núcleos familiares, somando cerca de 60 pessoas, que vivem e produzem em uma área localizada no distrito de Lídice, Rio Claro, na divisa entre o município e Angra dos Reis, em um vale entre as serras da Casaca e do Sinfrônio. A comunidade descende de dois troncos familiares, os Leite e os Antero, que ocuparam o território a partir de uma seqüência de trocas matrimoniais entre as duas famílias; a estes dois troncos se somou, na última geração, mais um, os Santos, do município de Valença. Trata-se de uma ocupação familiar de um território de uso comum, sustentada por uma identidade étnica. Produzem em seu território pequenas lavouras de subsistência e banana, que é comercializada, juntamente com outros produtos, por alguns membros da comunidade. Além disso, possuem pequenas criações de bovinos, suínos e aves, também para subsistência e comercialização do pequeno excedente. Alguns membros da comunidade possuem empregos formais, temporários ou não, quase todos fora de Lídice, mas combinam essas atividades, quando exercidas, com a lavoura e a criação. Eventualmente, os membros da família Leite fazem pequenos serviços, os “biscates”.

A família é, quase em sua totalidade, protestante, da denominação Assembléia de Deus. A liderança religiosa local coincide, também, com a liderança familiar: Benedito Leite, casado com Teresa Antero, é diácono da pequena congregação cuja sede fica no quintal de sua casa, e é também o filho mais velho de Alcides Leite. Tendo assumido a responsabilidade de cuidar do sítio de seu sogro, Domingos Antero, consolidou uma liderança familiar que teve conseqüências importantes no processo de ocupação do território por parte de seus irmãos e irmãs, cunhados, sobrinhos, filhos, genros e noras. Assumindo a tarefa de “tomar conta” da terra para os “donos”, Benedito e a família Leite consolidaram uma modalidade de uso comum da terra, na qual esta é distribuída através de critérios definidos internamente à família, discriminando as áreas de moradia e dos quintais das áreas de produção. Os limites do território foram definidos a partir da relação com os supostos proprietários (na qual os membros do grupo assumiram a tarefa de “tomar conta” da terra) das fronteiras com outros proprietários e da extensão dos bananais, cuja presença no tempo é prova da constância da ocupação do grupo.

Esta ocupação negra de caráter familiar de um território contínuo produziu uma identidade étnica reconhecida internamente pelos membros do grupo e externamente pelos vizinhos, moradores de Lídice e autoridades municipais. Esse reconhecimento se revela internamente no fato de que, apesar de contar, nas suas formas associativas, com a participação de “vizinhos” e companheiros, o grupo tem claro os critérios que definem a integração à comunidade, fundamentalmente origem familiar e ocupação do território. Externamente, este reconhecimento se manifesta no uso de diversos etnômios para se referir ao grupo familiar – “os Leite”, “os Leite de Alto da Serra”, “a família Leite”, “o pessoal do Dito Leite” – e ainda na prática local de “pedir permissão” para usar a área como atividade de lazer, acampando e usando as cachoeiras.

As famílias Leite e Antero chegaram à localidade conhecida como Alto da Serra na década de 1950, impulsionadas pela exploração do carvão. O “ciclo do carvão”, como alguns se referem, foi alimentado pela demanda da nascente industrialização do Vale do Paraíba, a partir da década de 1930, e movimentou uma força de trabalho camponesa que se deslocava por toda a região. Trata-se de um campesinato negro que entra em estado de desagregação a partir da passagem do século XIX para o século XX, em razão da crise da economia cafeeira, desagregação que é adensada, na região de Rio Claro, pelo represamento do Rio Piraí no início do século para fins de empreendimento hidrelétrico, o que causou forte impacto nas fazendas da região. A saída para a crise econômica na região do Vale do Paraíba se deu a partir do processo de industrialização que atingiu apenas alguns municípios, fundamentalmente Resende, Barra Mansa e Volta Redonda, e que resultou em um surto de urbanização. Os demais municípios do Vale entraram em um ciclo de retração econômica do qual nunca saíram. Assim, a partir da década de 1930, resta a este campesinato negro, deslocado pela crise econômica e pelo impacto da represa de Ribeirão das Lages, submeter-se à lógica de expropriação da economia do carvão, que submetia a força de trabalho a um nomadismo estrutural.

O ciclo do carvão entra em declínio na passagem da década de 1950 para a de 1960, entre outros fatores em razão da ilegalidade de sua exploração, consequentemente fixando sua força de trabalho na terra, doravante dedicada a outras atividades como o plantio de banana. Ao acompanhar a trajetória recente das famílias Leite e Antero, perceberemos que a exploração do carvão se estende sobre a mesma área que no século XIX floresceu com o plantio do café, logo depois submetendo o campesinato de ancestralidade negra e escrava ao deslocamento interno à região. A fixação na atividade agrícola a partir da década de 1950 é resultado do declínio da exploração do carvão, que exigiu dos camponeses negros a construção de alternativas econômicas. Esta leitura histórica da trajetória recente dos camponeses do Vale nos ajuda a entender porque a família Leite não ocupa um “território ancestral”, já que se trata de descendentes de escravos que transitavam pelo Vale do Paraíba em razão de determinantes da economia regional e se fixaram apenas na década de 1950 pelas mesmas razões.

No final da década de 1980, o grupo passaria a viver, pela primeira vez, um conflito em torno da posse da terra, na forma de uma ação de reintegração de posse movida pelo então recente proprietário de parte da área relativa ao seu território. Vulnerabilizados por sua condição de classe e experimentando sérios entraves no acesso à justiça, os três membros da comunidade acionados judicialmente perderam a demanda, sofrendo, a partir de então, a constante ameaça de se verem impedidos de manter suas atividades produtivas. Esta experiência teve impactos profundos nas representações e nos modos de organização social dos Leite, não apenas porque viram suas formas de apropriação da terra deslegitimadas pelo direito positivo, mas porque se viram diante da necessidade de rearticular suas formas de mobilização. Foi através do contato com um professor local vinculado ao movimento negro que tomaram conhecimento da alternativa jurídica de regularização fundiária a partir da caracterização do grupo como “remanescente de quilombo”. Os debates em torno da questão quilombola tiveram por conseqüência imediata a organização do grupo em torno do tema da regularização fundiária, o que levou à articulação da Associação de Trabalhadores Rurais do Alto da Serra, que operou como instância de organização política do grupo. Além disso, promoveu a aproximação do grupo com uma diversidade de atores, entre eles uma defensora pública, um procurador da república, advogados populares e antropólogos ligados a uma organização da sociedade civil.

Meu contato com o grupo se deu a partir de sua aproximação com o Programa Territórios Negros de Koinonia Presença Ecumênica e Serviço, onde passei a atuar como voluntário, em 2003. A atuação do Programa Territórios Negros junto à comunidade de Alto da Serra teve por focos fundamentais a formação do grupo no campo dos direitos (em particular no que tange ao direito fundiário), realizada através de oficinas e encontros, e assessoria a sua liderança. Este processo de formação no campo do direito culminou com o projeto Balcão de Direitos, financiado pela SEDH[2] do Governo Federal, momento no qual a família Leite definiu seu auto-reconhecimento como remanescente de quilombo, resultado de um processo longo e autônomo de reflexão acerca das compatibilidades entre suas formas locais de organização e os termos da lei. Assim, minha própria trajetória evidencia um papel que o antropólogo deve assumir, ao invés de relegar: o de partícipe de um processo de tradução que demanda dos agentes externos o esforço de tornar claro aos grupos étnicos os significados e implicações em torno de categorias definidas pelo direito e pelas políticas. Apenas este trabalho de mediação possibilita que os grupos, organizados em torno de suas formas de auto-reconhecimento, se identifiquem ou não com o conceito generalizante de remanescente de quilombo. Produzida pela adesão a uma categoria classificatória imposta pelo ordenamento jurídico, externa a quaisquer grupos sobre os quais ela possa incidir, a auto-atribuição de uma identidade quilombola passa necessariamente por este exercício de tradução dos termos locais de nominação e identidade, bem como das formas internas de regulação da terra e das relações, para os termos compreensíveis ao direito formal.

Organização dos capítulos

Afirmado na Constituição de 1988, o direito das comunidades remanescentes de quilombos aos seus territórios tem sido, nas últimas décadas, objeto de disputas em torno dos critérios legítimos para sua interpretação. Tais disputas têm se dado em espaços diversos como as instituições do mundo do direito, arenas políticas e meios de comunicação de massa e seus atores se colocam, em geral, em um campo polarizado entre posições, mais ou menos abrangentes quanto aos critérios para definição do sujeito e do objeto aos quais o dispositivo constitucional se refere, bem como quanto aos procedimentos cabíveis para a sua aplicação. O capítulo 1 tem por objetivo tanto sumariar as posições em torno das quais os agentes envolvidos na questão quilombola se mobilizam – no plano nacional e no contexto fluminense – quanto apontar para os critérios que balizam o argumento deste relatório.

No capítulo 2 pretendo dar conta do processo pelo qual as famílias Leite e Antero vieram a ocupar seu território, como culminância de uma trajetória pelos municípios do Vale do Paraíba fluminense e paulista para a produção de carvão vegetal. Para compreender esta trajetória, torna-se necessário empreender uma breve sociologia do campesinato no Vale do Paraíba, desde o período escravista da produção de café, passando pelo período de retração econômica no início do século XX. A territorialidade e a identidade próprias do grupo, para que não sejam essencializadas e reificadas, devem ser entendidas como parte do processo histórico da região.

No capítulo 3 veremos de que maneira, no processo pelo qual a família Leite ocupou a área que hoje define como seu território, se constituiu um conjunto de laços e relações que definiram a família como um grupo étnico, tanto internamente a ela quanto na relação com seus vizinhos, criando uma rede de reconhecimento local que lhes conferiu elementos para sua auto-definição como comunidade remanescente de quilombo. Este processo de ocupação definiu não apenas uma identidade de caráter familiar, mas também uma forma específica de relação com a terra, uma territorialidade própria, construída pela passagem da atividade carvoeira para a agrícola.

O capítulo 4 tem por tema fundamental a juridicização da questão fundiária e seus efeitos na organização do grupo. Após traçar um panorama da estrutura fundiária da região, sobretudo nas décadas de 1980 e 1990, passo a tratar da ação de reintegração de posse sofrida por três de seus membros a partir de 1992, momento em que as formas locais de acesso à terra são confrontadas com os dispositivos do direito formal. O conflito jurídico não apenas dramatiza o confronto entre a lógica da propriedade privada e as concepções locais de terra e direitos, como também é exemplar do esgotamento das formas tradicionais de organização deste campesinato, em torno do sindicalismo rural, e enseja a articulação de novas estratégias, novos atores e novas formas de demandar direito à terra.

O capítulo 5 apresenta um quadro das condições sócio-econômicas da comunidade quilombola de Alto da Serra, com dados relativos a demografia do grupo, atividades produtivas, condições de vida, acesso a serviços e recursos públicos. Novamente, o quadro da comunidade será precedido por (e relacionado ao) quadro geral do município e da região.

O capítulo 6 abordará a organização da comunidade em associações e os recursos utilizados para adequar sua própria história às categorias jurídicas e políticas em torno do artigo 68-ADCT, o que produziu o reconhecimento político do grupo como comunidade remanescente de quilombo, ao mesmo tempo em que alguns de seus membros viviam intensas transformações no campo das representações. Como veremos, este é um momento de interpretação constitucional, já que o grupo teve de traduzir suas próprias concepções para os termos da lei. Para além dos interesses iniciais, em torno da regularização fundiária, este reconhecimento produziu impactos de ordem simbólica, alterando a forma como o grupo se percebe e é percebido por seu entorno. Reconhecida como remanescente de quilombo, a família Leite acumulou força política para se manter na terra, angariou respeito de vizinhos e autoridades municipais, passou a demandar um conjunto mais amplo de direitos sociais, identificou-se com outras comunidades negras rurais do estado, articulando-se politicamente com elas.

Finalmente, o capítulo 7 apresenta uma descrição do processo de discussão para a delimitação da demanda territorial, bem como a proposta final da comunidade do território a ser titulado, acompanhada de indicações de localização, vias de acesso e marcos de fronteira. Mais do que indicar a proposta territorial, este capítulo apresenta uma análise das formas pelas quais o grupo definiu o território demandado, e como tal definição exigiu um exercício de ponderação de interesses e valores. Neste processo, novamente entram em choque duas lógicas distintas, a da propriedade privada e a da propriedade comunal. Se agora a lógica da propriedade comunal passa a ser privilegiada pelo próprio direito e pelas instituições, por outro lado a lógica da propriedade privada emerge nas próprias discussões internas ao grupo, a levar em consideração outros interesses como a preservação dos laços de vizinhança, o que torna a proposta territorial o resultado de intensas negociações.

Nota metodológica

Apesar de meu contato com o grupo remontar o ano de 2003, o trabalho de campo para a produção deste relatório compreendeu os meses de abril a julho de 2007. Além de observação participante, foram realizadas entrevistas abertas com membros da comunidade, professoras da rede pública estadual e com a Secretária de Desenvolvimento do Município. Os dados relativos ao município de Rio Claro foram obtidos junto às autoridades municipais (secretarias de saúde, educação e agricultura) ou no sítio eletrônico do IBGE. As informações relativas à história do município e do Vale do Paraíba foram obtidas através de fontes secundárias, citadas na bibliografia, mas contei também com fac símiles dos relatórios de província do Rio de Janeiro entre os anos de 1902 e 1930, pelo que agradeço a Daniela Yabeta. Alguns depoimentos de membros da comunidade foram retirados do relatório do projeto Balcão de Direitos, promovido por Koinonia e coordenado por Roberta Rodrigues, a quem também agradeço. O mapa do território demandado pelo grupo foi resultado de oficinas territoriais realizadas na comunidade no período de trabalho de campo, e uma versão preliminar do mapa foi desenhada em conjunto com os quilombolas. Finalmente, o perfil sócio-econômico da comunidade contou com dados da pesquisa realizada por Fabiene dos Santos, em relatório também citado na bibliografia, a quem também agradeço, e com os resultados do diagnóstico participativo realizado na comunidade no ano de 2005 pela equipe do projeto Etnodesenvolvimento Quilombola, financiado pelo Ministério do Desenvolvimento Agrário, no qual atuei como supervisor.



[1] Koinonia Presença Ecumênica e Serviço é uma associação sem fins lucrativos que tem entre seus objetivos a assessoria aos movimentos sociais. Dentre seus programas, o Egbé – Territórios Negros trata das relações entre comunidades negras tradicionais e seus territórios. Desde 2000, o Egbé atua no Rio de Janeiro e no Espírito Santo, assessorando as comunidades remanescentes de quilombos.

[2] Secretaria Especial de Direitos Humanos

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Pular para o conteúdo