Luta desigual
Um novo relatório, já em poder da ONU, sobre a situação dos que combatem abusos aos direitos humanos exibe um quadro sombrio. Quem denunciar ousa torna-se, com freqüência, alvo de violência ainda
Por Phydia de Athayde
A vida de quem escolhe lutar pelos direitos humanos em cenários como os encontrados no Brasil não é fácil. O País convive com práticas históricas de perseguição e assassinato impune desses militantes. Há menos de uma década, porém, surgiu o conceito de “defensor de direitos humanos” e, com isso, o governo federal vislumbrou um Programa Nacional específico para a proteção dessas pessoas. Uma iniciativa que, como se verá, ainda engatinha. A despeito da velocidade com que crescem as denúncias e os casos de violação de direitos humanos no País.
Em dezembro de 2005, o Brasil recebeu a visita da representante do secretário-geral da Organização das Nações Unidas (ONU), a paquistanesa Hina Jilani, em missão para avaliar a situação brasileira.
CartaCapital teve acesso às conclusões e recomendações preliminares de Hina (ainda sem data para divulgação). Aos olhos da representante da ONU, saltaram flagrantes como a “imensa distância” entre o que é anunciado e o que é criado, efetivamente, para proteger os ameaçados. Entre os problemas que prendem o Brasil a um clima de descrédito às iniciativas de direitos humanos, ela destaca a impunidade.
Outra questão, em geral menos abordada, é a “criminalização das ações sociais”, que Hina Jilani descreve assim: “Defensores dos direitos humanos estão sujeitos a perseguições injustas e maliciosas, são presos repetidas vezes e incriminados como ato de retaliação pelo Estado e também por entidades não estatais poderosas e influentes”.
Evidentemente que nem todos os processos judiciais sofridos por militantes de direitos humanos são invencionices persecutórias. Porém, essa é uma prática de repressão crescente, não só no Brasil, como na América Latina. Quem informa é Sandra Carvalho, diretora-executiva da Justiça Global – uma ONG que, junto à Terra de Direitos, fez o relatório “Na linha de frente – defensores de direitos humanos no Brasil – 2002-2005”, entregue a Hina.
Sandra Carvalho, da Justiça Global, comenta:
– Hina ficou surpresa. Ela não sabia como a situação brasileira era complexa, com a realidade das ameaças e a criminalização dos movimentos sociais, uma estratégia usada por grupos econômicos poderosos e por agentes do Estado para intimidação e difamação.
Entre as recomendações de Hina Jilani ao País destaca-se a tarefa urgente de proteger os defensores de direitos humanos. O que difere um defensor de uma testemunha de crime (que também precise de proteção) é a necessidade que o primeiro tem de permanecer onde está.
“Não adianta tirar o defensor de seu local de ação, porque assim triunfa a violação aos direitos humanos”, diz Omar Klich, coordenador do Programa Nacional de Proteção aos Defensores de Direitos Humanos, ligado à Secretaria Especial de Direitos Humanos. À frente do programa há seis meses, ele admite que sua maior dificuldade é “tirá-lo do chão”, pois desde 2003 a secretaria tenta instituir uma política permanente para a proteção dos defensores de direitos humanos. Até hoje, o programa foi “inaugurado” duas vezes (outubro de 2004 e fevereiro de 2005) para agora, devagar, começar a sair do papel. Klich avalia:
– No Pará, está mais avançado. Lá temos 12 pessoas sob escolta, e uma equipe pronta para diagnosticar a situação das dezenas de jurados de morte. Em 2005, treinamos a primeira turma, de 70 policiais, ensinando o que são direitos humanos e como proteger um defensor ameaçado.
O “Na linha de frente” traz 51 casos emblemáticos de violações cometidas em 17 estados. Dentre eles, em 11 há envolvimento de policiais em crimes (principalmente execuções). Em outros dez há ação de empresas transnacionais nos conflitos (geralmente via processos judiciais e difamação). São exemplos dos casos:
1. Em 15 de abril de 2005, Alvino Mendes de Almeida, quilombola da Comunidade Parateca (área cobiçada por fazendeiros) em Malhada (BA), foi assassinado. A polícia encerrou as investigações com a hipótese de “disparo acidental”. Mas o Ministério Público fez uma denúncia por homicídio culposo contra o fazendeiro autor do disparo.
2. Américo Novaes, líder de um grupo de sem-tetos acampados em Goiânia, foi preso de forma arbitrária e suspeita em 26 de outubro de 2005. Somente depois de forte interferência de entidades de defesa dos direitos humanos teve habeas corpus.
3. Fernanda Giannasi, ex-fiscal do Ministério do Trabalho, tem sofrido perseguição institucional e recebido ameaças de morte. Ela lidera a campanha para a proteção dos direitos dos trabalhadores expostos ao amianto em São Paulo e sofre dois processos por difamação.
4. Jair da Costa, líder do Sindicato dos Sapateiros de Igrejinha (RS), foi morto em 1º de outubro de 2005 por policiais militares durante uma manifestação. Identificado como um dos líderes do movimento, foi algemado, espancado e executado. Os seis acusados aguardarão o julgamento em liberdade.
5. Em 8 de março de 2005, a PM de Minas Gerais dispersou de forma violenta um protesto de agricultores do Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB) contra a construção da barragem de Jurumirim, no município de Rio Casca. Cerca de 35 agricultores foram espancados, incluindo 11 mulheres e crianças.
6. Desde 1982, o povo indígena Pataxó Hã-Hã-Hãe está em conflito com fazendeiros pela posse da terra. Em 18 de julho de 2002, pistoleiros sob o comando do fazendeiro Valdir Alves mataram Raimundo Rosa Neres a tiros na região de Taquari, na Bahia. Três anos após o assassinato de Raimundo, o inquérito não chegou a qualquer resultado.
Além desses exemplos dos episódios compilados pela Justiça Global nos últimos três anos, CartaCapital traz, na edição impressa, dois casos atuais em que também é flagrante o desrespeito à dignidade humana e à aspereza da vida de quem luta por essa causa.
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