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Revista do Iphan aborda ampliação do conceito de quilombo

Território Negro

Luta política do movimento negro ampliou o conceito de comunidade remanescente de quilombo. Trabalhos conjuntos entre Iphan e Fundação Cultural Palmares usam dessa noção mais completa

Atualmente, o conceito de comunidade de quilombo vai muito além dos antigos grupos descendentes de escravos fugidos das fazendas do período colonial. Ele também engloba grupos urbanos, como terreiros de candomblé, que se auto-definem como comunidades negras e pedem o registro de seu espaço como “território negro”. Essa perspectiva tem gerado uma ampliação do leque de políticas públicas voltadas para esse segmento da sociedade, entre elas as ações do Iphan. Ao mesmo tempo, também é objeto de discussões entre os próprios atores sociais envolvidos, como as populações de afrodescendentes, órgãos governamentais e o movimento negro organizado.

Um dos marcos da ampliação dos direitos de populações afrodescendentes é a Constituição Brasileira de 1988. No artigo 68 dos Atos das Disposições Transitórias, a Constituição Federal assegura a posse definitiva das terras a todas as comunidades remanescentes de quilombos. Já no seu artigo 216, garante o tombamento dos documentos e sítios detentores de “reminiscências de antigos quilombos”. Porém, segundo o antropólogo e historiador José Maurício Arruti (veja entrevista completa em http://www.comciencia.br/entrevistas/memoria/arruti.htm ) a definição veio acompanhada de uma noção muito genérica de quilombo, eleita pelo movimento negro da época como uma metáfora de resistência política: “O quilombo emerge como uma categoria metafórica de força política, como bandeira de um movimento social que está emergindo desde 1970. Enquanto a Constituição de 1988 está sendo escrita, a categoria quilombo não é mais do que isso: uma metáfora que fala numa reparação em termos históricos”, afirma.

Entre as conseqüências dessa perspectiva para a memória das próprias comunidades remanescentes de quilombos, Arruti vê um aspecto positivo. O movimento negro reconhece uma noção de resistência em sentido amplo, não apenas voltada para a idéia de “pegar em armas”. Segundo o historiador, “se a resistência for percebida como várias estratégias para se manter vivo e perpetuar o seu grupo, esses grupos remanescentes de quilombos, ou de senzalas, ou de portos de embarque de escravos, são resistentes de alguma forma porque chegaram até hoje, ocupando áreas que, quase sempre, são de uso comum, diante de uma situação de especulação imobiliária e de um avanço do capitalismo”, afirma ele.

A situação apontada pelo historiador e antropólogo fica nítida quando são analisados recentes casos de litígios envolvendo terras dessas comunidades. É o caso do Quilombo da Caçandoca, que fica em uma praia situada em um dos trechos mais valorizados do litoral de São Paulo, cercado por casas de veraneio e condomínios de luxo, no município de Ubatuba. O local agrega 60 famílias remanescentes de antigos trabalhadores de uma fazenda de café do século XIX. A comunidade enfrenta uma empresa do ramo imobiliário que quer a posse das terras. O caso se arrasta na justiça desde 1998, quando foi concedida a primeira decisão judicial favorável à empresa. Desde então, os moradores vêm sofrendo ameaças freqüentes e já tiveram que conseguir, até agora, seis liminares na justiça para evitar a expulsão das famílias. No último dia dois de junho, o Incra reconheceu as terras como oficialmente pertencentes à comunidade e uma liminar favorável à empresa foi cassada pelo Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo. Mas o problema ainda não está totalmente resolvido. Falta a titulação das terras, atribuição que atualmente compete ao Incra.

Além disso, desde a elaboração da Constituição de 1988 até os dias atuais, essa perspectiva apontada por Arruti, na qual a resistência é vista sob um enfoque mais ampliado, também refletiu na própria lógica de atuação de órgãos que atuam na preservação do patrimônio cultural afrodescendente no Brasil. É o caso do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan). Uma das instituições que assessora o órgão na preservação do patrimônio cultural dos afrodescentedentes é a Fundação Palmares, criada em 1988 e subordinada ao Ministério da Cultura. Segundo Márcia Sant’Anna, diretora de Patrimônio Imaterial do Iphan, atualmente, a Fundação Palmares trabalha com uma noção mais ampla de comunidades quilombolas, que engloba não apenas grupos oriundos de comunidades de escravos fugidos, abandonados ou que receberam terras de seus antigos senhores, mas também comunidades negras urbanas: “A Fundação considera, por exemplo, os terreiros de candomblé como sendo comunidades de quilombolas”, explica.

Macia Sant’Anna conta que a Fundação Palmares tem funcionado atualmente como “intermediária” entre o Iphan e as comunidades: “A Palmares recebe as propostas daquelas que se auto intitulam comunidades negras e pedem o registro de suas terras”, afirma. Em seguida, a Fundação encaminha as prioridades de reconhecimento cultural para o Iphan, tanto via tombamento como via inventário e registro de patrimônio imaterial.

A antropóloga afirma que o Iphan também usa como referência a conceituação ampliada de quilombos e que tem diversos projetos buscando preservar o patrimônio cultural dessas comunidades. Ela destaca alguns: “desenvolvemos trabalhos com antigos grupos históricos de remanescentes de quilombos rurais, entre eles o do município de Pinheiro Machado, no Rio Grande do Sul, na área denominada de Porongos; em Cachoeira, na Bahia; e em três comunidades em Pernambuco”, afirma. Os exemplos citados por Sant’Anna referem-se a trabalhos sobre inventários de referências culturais, ou seja, são um mapeamento das práticas culturais e saberes das comunidades que estão diretamente ligados ao território onde estão situadas. No entanto, Márcia Sant’Anna também chama a atenção para outros trabalhos no âmbito do patrimônio imaterial que envolvem comunidades negras urbanas e que, na perspectiva apontada anteriormente, também podem ser consideradas como voltadas para comunidades remanescentes de quilombos. São elas o registro do Ofício das Baianas do Acarajé, do Samba-de-Roda baiano e das paneleiras de goiabeiras.

Mas a idéia que amplia esta definição de quilombos pode também gerar atritos entre a própria comunidade e os atores sociais envolvidos no reconhecimento da mesma, como por exemplo o movimento negro. Para José Maurício Arruti, isso ocorre quando o movimento social começa a exigir desses grupos coisas que eles não são, como tomar essas comunidades como exemplares de sociedades primitivas ou como marcos de uma resistência que, na verdade, não reflete a experiência histórica e a memória daquele grupo. Arruti afirma: “Existem várias situações nas quais pessoas ligadas ao movimento social, ou que ocupam cargos no Estado, chegam a essas comunidades rurais com certas exigências, a ponto dessas comunidades recusarem o retorno desses funcionários”. Um exemplo concreto citado por ele envolve a comunidade de São José, no Rio de Janeiro, que tinha uma enorme expectativa para trocar suas casas de sapé e pau-a-pique por casas de alvenaria: “Houve, então, conflitos com representantes do movimento negro, do Incra e até do Sindicato dos Trabalhadores Rurais, porque eles estavam exigindo dos moradores a manutenção das suas casas antigas, em nome de uma tradição que é um produto ideológico deles mesmos e não de uma demanda da comunidade”, completa.

< O Observatório Quilombola publica todas as informações que recebe, sem descartar ou privilegiar nenhuma fonte, e as reproduz na íntegra, não se responsabilizando pelo seu conteúdo.>

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