BRASIL-

Nancy Cardoso, assessora teológica da Christian Aid-

A convocação do Sínodo da Amazônia pelo Papa Francisco, apoiada no documento Laudato Si, desafia a reflexão teológica ecumênica e inter-religiosa como resposta de fé e pastoral  às complexas crises enfrentadas pela região. Com este desafio a REPAM  (Rede Pastoral Pan-Amazônica) organizou em janeiro de 2019 um encontro de teólogos e teólogas –  no qual eu tive a grande alegria de participar[1].

Esse encontro,  baseado nas escutas dos  contextos da Pan-Amazônia e na presença da Igreja / Igrejas, priorizou 4 dimensões[2]:

1) Ameaças à Amazônia e seus seres e dificuldades para seus povos

2) As culturas e sabedorias dos povos originais e suas estratégias para a região

3) Culturas e sabedoria das populações urbanas e suas estratégias para a região

4) Os possíveis papéis da Igreja / Igrejas, movimento ecumênico e inter-religioso comprometido com a Amazônia.

Enquanto o Sínodo acontece em Roma, seria importante retomar este ponto das relações ecumênicas e inter-religiosas.

O Cardeal Claudio Humes, arcebispo emérito de São Paulo (SP) afirmou sobre a causa da Amazônia e seus principais problemas

“São todos os desafios da floresta, da preservação adequada , a questão dos índios e a preservação de suas culturas, a questão dos ribeirinhos e das cidades com suas periferias imensas , o avanço das igrejas evangélicas nas comunidades católicas. Também as distancias, a falta de transportes, a falta de padres e missionários.”[3]

(Pixabay)

O campo religioso na Amzônia é hoje plural[4]. A diversidade revela mais o desencontro e as agendas particulares do que as convergências movidas pela escuta do bioma ameaçado e das populações em situação de pobreza e indignidade.

Setores religiosos cristãos se aliam ao modelo do agronegócio e extrativismos permanecendo numa equação rasa e superficial entre desenvolvimento econômico a todo custo e o que eles chamam de “vontade de Deus”. Os modelos de evangelização colonizadores deixaram marcas profundas no território e nas culturas e ainda permanecem a presença intolerante de igrejas cristãs em relação aos modos de crença nativos.

A profunda irritação de setores religiosos fundamentalistas com o Sínodo expressam um processo avançado de simbiose entre cristianismo e a direita política e econômica: o cristianismo oferece ao capitalismo predatório sua compreensão de “teologia do domínio” ; o capitalismo alimenta a espiritualidade empreendedora fundamental às estratégias individuais e sectária das igrejas sobre economia.

A “teologia do domínio” afirma a cisão do imaginário deus/natureza como um binário marcado pela hierarquia do criador/criação (Gênesis). Projetado como modelo universal e afirmado como narrativa originária/original da civilização, a teologia cristã se prestou (e se presta!) aos projeto de dominação e colonização e vai alimentando as teologia neo-coloniais, imperialistas e hiper extrativistas.

Hoje, o modelo capitalista de financeirização da agricultura e da natureza, opera a partir de três lugares teológicos:

  • a sacralização do mercado,
  • a sacralização da tecnologia e
  • a sacralização do desenvolvimento.

Operando na base da separação natureza/cultura os usos limitados do texto bíblico fecundou uma fé e um credo que afirma:

  • a natureza a serviço/à disposição da humanidade,
  • a pretensão supremacista da espécie humana de que nada pode deter seu modo de vida e sua ciência,
  • o mercado, o dinheiro e o lucro como as três pessoas da trindade de um mundo cindido entre os 5% que se beneficiam desse culto exclusivo e as maiorias que vivem à margem da natureza, da riqueza produzida e das técnicas e ciência.

O modelo econômico é “deus” e se expressa na história como ex-machina extrativista. O progresso do capitalismo se confunde com a revelação de deus na história… numa relação extratora das matérias de tudo que vive para gerar a substância artificial do lucro que se afirma para além da história, da natureza e da cultura.

No fim das contas o lucro cria o mundo e o sustenta. As narrativas tradicionais de povos originários de divindades que criam a partir da matéria seja ela o milho, o rio, a terra, é substituída violentamente pela imagem do progresso que… extrai a matéria, se apodera dela e a destrói para engendrar um mundo novo. A tecnologia de ponta de extração intensiva de minérios, extraídos com devastação ambiental e a exaustão do trabalho humano escravizado engendra – fiat lux – a divindade dos aparatos de mídia, das tecnologias de ponta e seu exclusivo grupo de sacerdotes.

A “teologia do domínio” que professam – que considera os ecologistas como pessoas contrárias à fé cristã – arruína suas próprias raízes em uma compreensão literal dos relatos da criação do livro do Gênesis, uma compreensão que coloca o homem em uma situação de “domínio” sobre a criação, enquanto que esta é submetida ao arbítrio do homem, em uma bíblica “submissão”.[5]

Outro aspecto da “teologia do domínio” é a afirmação de que Deus “está no controle”  de tudo que acontece e por isso não há  porque se preocupar com os desastres naturais, as dramáticas mudanças climáticas e a crise ecológica global. Tudo isso faz parte da soberania de Deus e sinal do “fim-do-mundo”. Todos os aspectos possíveis de justiça e desigualdade são deslocadas para um esperado “juízo final” que torna desnecessária qualquer prática ou espiritualidade de cuidado e preservação ambiental.

Em termos do campo religioso formal a Igreja Católica sempre teve o monopólio  territorial e nas relações de poder institucional. A presença de protestantes e evangélicos históricos sempre foi pequena e restrita a setores externos da população,como por exemplo as muitas missões estrangeiras de evangelização, em especial entre ídigenas. Mas no chão da Amazônia sempre se conviveu com uma pluralidade de matrizes religiosos sem muito controle das agência das igrejas.

A espiritualidade do xamanismo indígena, a pajelança, o catolicismo popular, o espiritismo kardecista, os cultos aos orixás e os movimentos protestantes de missões e imigrações entrelaçaram-se num sincretismo cultural- religioso e formaram o ethos brasileiro.[6]

A chegada do pentecostalismo mais significvativo acompanha o movimento de migração e de colonização e reforça o sentimento de empreendedorismo tão importante para o enfrentamento das condições adversas de ocupção da região. Ao lado de grandes setores econômicos e seus interesses de exploração, setores médios do su/sudeste do Brasil chegam na região desconsiderando a cultura local e impondo seus modos de vida, inclusive religioso. A agilidade do movimento pentecostal (sem hierarquias e descentralizado) favorece o crescimento de igrejas locais que vão se filiando às grande famílias do pentecostalismo brasileiro.

Estudiosos da Amazônia propõe a concepção de pentecostalismo caboclo entendendo como  a assimilação e resignificação de formas de curandeirismo ou xamanismo juntando-se ao ascetismo evangélico que resultam em novas práticas religiosas e espirituais principalmente entre (índigenas destribalizados, desterritorializado, e mestiços/branco-português com ameríndio e com afro-descendente). Estes setores que se encontram em desvantagem em relação aos modelos econômicos que se impõem na região encontram nos espaços das muitas igrejas lugar de sociabilidade e promoção do espírito empreendedor.

Ao lado dessas estratégias de sincretismo popular as grandes familias das igrejas pentecostais vão estabelecendo vínculos com espaços políticos locais e regionais e fazendo alianças com grandes empreendimentos e políticos mantendo um âmbito de ajuda e assitências às comunidades. Neste sentido o Sínodo da Igreja Católica tem alguns desafios em relação ao campo religioso:

“a Amazônia, ao menos a brasileira, não é mais católica (…)este ponto de partida é crucial para a celebração do Sínodo. Se a Amazônia tem uma maioria pentecostal, é necessário tratar este fenômeno a fundo. Qualquer saudosismo de uma Amazônia que não existe mais é fatal para a evangelização integral da mesma. Até em algumas regiões da Amazônia a maioria pentecostal chega a 80%”. Dom José Luis Azcona[7]

A metodologia de escuta das comunidades e povos da Amazônia em preparação para o Sínodo afirma a necessidade de conhecer a realidade e sentir-pensar a Amazônia a partir do chão mesmo da Amazônia. Escutar a Amazônia pode e deve também escutar as vozes e testemunhos de outras comunidades cristãs na região e também as vozes de outras matrizes religiosas tão vitais para a defesa dessa “herança preciosa”.

A igreja católica romana tem história, capacidade e profecia para fazer acontecer essa escuta ecumênica e interreligiosa tão necessária. Este testemunho ecumênico pode ser fundamental para o deslocamento de setores cristão ainda aliados aos modelos extrativistas e predatórios. O testemunho ecumênico pode concretamente fissurar as antigas relações de lealdade e subserviência de um cristianismo ainda colonizador, intolerante e supremacista.

Atender ao imperativo ecumênico na Amazônia abre espaço para responder a demandas concretas de defesa do bioma mas também de uma espiritualidade ecológica integral:

  • o diálogo inter-religioso se inscreve em um padrão cultural identitário, de mestiçagem, geocultural,
  • de processos que têm a ver fundamentalmente com poder me reconhecer no outro como próximo, sem ser o outro.[8]

A campanha Somos la Amazônia[9]  – animada pela Christian Aid – quer ser parte desses diálogos amorosos e responsáveis de “todo mundo habitado”:

Esperamos que ela possa solidificar o apoio ecumênico do Norte e do Sul Globais para trabalharmos juntas e juntos, em uma profunda expressão de solidariedade.

Nas palavras da Laudatro Si uma espiritualidade de ecologia integral exige sair de nós mesmos, viver em comunhão com outros/outras, com as criaturas. A resposta a este desafio não pode ser confessional nem limitada por um universalismo que não vai ao encontro do território, das culturas, dos seres, dos modos de fé. Neste sentido, o Sínodo da Amazônia é uma profunda conversa interna, corajosa e necessária da ICAR que aquece também o coração e abre os olhos das igrejas irmãs, dos povos de fé. Todo mundo habitado.

É uma oportunidade e um desafio maturar esta espiritualidade de solidariedade: Deus conosco.

Na verdade, a pessoa humana cresce, amadurece e santifica-se tanto mais, quanto mais se relaciona, sai de si mesma para viver em comunhão com Deus, com os outros e com todas as criaturas. Assim assume na própria existência aquele dinamismo trinitário que Deus imprimiu nela desde a sua criação. Tudo está interligado, e isto convida-nos a maturar uma espiritualidade da solidariedade global que brota do mistério da Trindade.[10]

[1] Teólogos refletem sobre o Sínodo para a Amazônia, https://repam.org.br/?p=2099

[2] Teólogos apontam sete pontos-chave a partir das escutas sinoda, ishttps://repam.org.br/?p=2129

[3] https://rbj.com.br/geral/amazonia-politica-ecumenismo-e-dialogo-inter-religioso-foram-os-temas-da-coletiva-de-imprensa-0045.html

[4]René Somain, Religiões no Brasil em 2010, Revista Franco Brasileira de Geografia, https://journals.openedition.org/confins/7785?lang=pt#tocto1n2

[5] SPADARO, Antonio, Fundamentalismo evangélico e integrismo católico, um surpreendente ecumenismo, in: https://www.brasildefato.com.br/2019/01/04/artigoor-fundamentalismo-evangelico-e-integrismo-catolico-um-surpreendente-ecumenismo/

[6] http://periodicos.pucminas.br/index.php/horizonte/article/view/P.2175-5841.2018v16n50p900.

[7] https://www.acidigital.com/noticias/a-amazonia-brasileira-nao-e-mais-catolica-emerito-de-marajo-critica-instrumentum-laboris-do-sinodo-22138

[8] Luís Liberman, O Sínodo sobre a Amazônia é um desafio desse pontificado, http://www.ihu.unisinos.br/78-noticias/585519-o-sinodo-sobre-a-amazonia-e-um-desafio-desse-pontificado-entrevista-com-luis-liberman

[9] Ação global de solidariedade ecumênica pela Amazônia, https://alc-noticias.net/bp/2019/07/12/acao-global-de-solidariedade-ecumenica-pela-amazonia/

[10] Laudato Si, A Trindade e a relação entre as criaturas, .246

Clique no link para saber mais: https://alc-noticias.net/bp/2019/10/21/ecumenismo-na-amazonia-pelo-amor-de-todo-o-mundo-habitado/