Após 22 anos da morte de Mãe Gilda de Ogum, casos de intolerância religiosa permanecem atingindo majoritariamente negros e pessoas de religiões de matriz africana
Por: Pedro Rebelo
Janeiro está chegando ao fim e é preciso dizer que este ano o dia 21 de Janeiro – Dia Nacional de Combate à Intolerância Religiosa, marcou 22 anos desde que Mãe Gilda de Ogun deixou o ayê para tornar-se ancestral no Orun. Nosso compromisso com sua memória não apenas move nossa luta por liberdade de crença, como nos faz perceber que ainda estamos distantes do cenário desejado.
A herança racista da História do Brasil marginalizou as religiões de matriz africana, através do próprio Estado como instrumento de perseguição, desde o Tribunal do Santo Ofício ainda nos tempos de colônia à Inspetoria de Entorpecentes e Mistificação durante o Estado Novo, até os dias atuais em que a perseguição contra terreiros se dá através de igrejas fundamentalistas que ganharam espaço no Brasil desde década de 1980, com graves contornos no Rio de Janeiro na última década a partir de uma adesão do tráfico aos ideais destas instituições, promovendo assim uma verdadeira cruzada em seus territórios.
Apesar do longo histórico de perseguição os dados da intolerância religiosa praticada no Brasil, evidentemente subnotificados, só começam a ganhar consistência a partir de 2011. As estatísticas mostram a realidade: as ameaças à livre manifestação da fé atingem, na maioria dos casos, negros e pessoas de religiões de matriz africana. Apenas no primeiro semestre de 2019, houve um aumento de 56% no número de casos em relação ao mesmo período do ano anterior, segundo dados do Disque 100.
Sobre a subnotificação dos casos, o fenômeno se explica pela omissão das denúncias por parte das lideranças religiosas agredidas, por diferentes motivos, tais como: pela falta de preparo e vontade dos funcionários de delegacias, que tratam crimes de intolerância ora como injúria ora como briga pessoal ou de vizinhos, desqualificando os depoimentos; descrença no Poder Público, falta de informação e até medo de mais repressão aos terreiros e lideranças já vitimados.
No Rio de Janeiro, 6700 casos de intolerância religiosa foram registrados entre os anos de 2015 e 2019, segundo a Polícia Civil. Além disso, um levantamento realizado pelo Instituto de Segurança Pública do Rio de Janeiro contabilizou 1355 casos que podem estar relacionados a crimes deste tipo só em 2020. Ou seja, uma média superior a três casos por dia durante todo o ano. No entanto, as denúncias seguem em número muito reduzido aos casos concretos. Em 2020 foram contabilizadas apenas 23 denúncias efetivas no Rio de Janeiro, como demonstra o ISP.
Não podemos esquecer da pandemia. Terreiros em todo país fecharam suas portas em respeito à vida, mas ficaram desamparados. A violência continuou com o agravamento de vulnerabilidade social e econômica.
Os dados de de 2021, apresentados na sexta-feira, dia 21, apontam um aumento de 43% nas denúncias – 47 ao todo, sendo 43 contra religiões de matriz africana, 3 contra judeus e 1 contra católicos. Entretanto, ainda segundo o Instituto de Segurança Pública do Estado do Rio de Janeiro, ao longo do ano passado foram registradas 1564 ocorrências que podem estar ligadas a crimes de ódio e intolerância religiosa, ou seja, um aumento de 13,3% em relação à 2020 quando a média de casos por dia superara a marca de 3 casos. Em 2021 foram em média mais de 4 casos por dia.
Em relação ao perfil dos agressores há de se destacar que, em 56% das ocorrências o agressor é ligado a igrejas fundamentalistas e 1 a cada 10 ocorrências contra terreiros estão associadas ao tráfico. Em meio ao cenário preocupante, podemos destacar ações do Poder Público no Rio de Janeiro, ainda muito tímidas e sem qualquer plano de ação concreto:
Em fevereiro do ano passado, a ALERJ instaurou uma CPI para apurar causas e consequências dos casos relacionados com intolerância religiosa no estado. A CPI transcorreu o ano de 2021 com pouca transparência, pouca divulgação e consequentemente uma baixa adesão.
O relatório aprovado em dezembro passado contém 152 páginas e 35 recomendações aos órgãos públicos. Entre as recomendações mais importantes estão:
- Inclusão de lideranças religiosas fundamentalistas em investigações da Polícia Civil e Ministério Público, quando houver indícios de sua participação como mentor ou coautor do crime de Intolerância Religiosa.
- Criação de uma força-tarefa para combater a intolerância religiosa nas comunidades, onde pontificam as invasões, desocupações e demolições de terreiros por parte do tráfico, de modo que haja um protocolo no atendimento às vítimas, assim como a possibilidade aluguel social em casos de perda de moradia.
- Implementação de projetos educacionais nas escolas da rede estadual para conscientização e combate do preconceito religioso
Não há um plano para pôr em prática estas e outras recomendações.
Houve ainda a aprovação de uma lei estadual indicando o poder público a criar uma agenda em todo mês de abril com palestras, debates, rodas de conversa, e atividades culturais com temática voltada para o combate, prevenção e conscientização contra a intolerância religiosa, fato ainda não discutido
Em março do ano passado foi sancionada a Lei 9.210/21, que estabelece uma política de combate à intolerância religiosa nas escolas do Estado do Rio de Janeiro. No entanto, não há ainda um plano efetivo para o cumprimento desta.
Além disto, importantes projetos de lei, aprovados pela ALERJ, foram esquecidos pelo governo do Rio de Janeiro, como a determinação que o que o Instituto de Segurança Pública do Estado do Rio de Janeiro prepare semestralmente dossiês qualitativos sobre os crimes de racismo, intolerância religiosa e LGBTQIA+fobia.
Em alguns municípios específicos contabilizamos esforços nesta luta, que acabam por esbarrar em interesses de grupos fundamentalistas locais, decisivos no cenário político-eleitoral.
Na capital, a câmara instaurou a Comissão de Combate à Intolerância Religiosa e com o Centro de Articulação de Populações Marginalizadas, promoveu, em janeiro de 2021 o 1º encontro da Frente Parlamentar Pela Liberdade Religiosa e o Estado Laico, com representantes de diversos segmentos religiosos.
Niterói também criou a primeira Comissão Municipal de Promoção da Liberdade Religiosa em maio de 2021, em junho a Câmara Municipal de Nilópolis solicitou ao governo estadual a implantação do Núcleo de Atendimento às Vítimas de Intolerância Religiosa.
Em Maricá já existe uma coordenadoria municipal de assuntos religiosos, com ações muito tímidas devido ao eleitorado fundamentalista da cidade. A exemplo disto a prefeitura de São Gonçalo instaurou uma coordenadoria deste tipo, e entregou nas mãos de um pastor com posições conservadoras.
Em 2022 temos o compromisso de manter a luta por direitos e liberdade religiosa, levando as denúncias de Intolerância Religiosa à Cúpula dos Povos Rio +30, ocupando as ruas e derrotando o projeto fundamentalista de Bolsonaro nas urnas!