O Oxê da Palmares e a falácia do Estado Laico
Por: Pedro Rebelo
Pedro Rebelo é professor de História,
pós graduado em Ciência da Religião,
atuante na luta por liberdade religiosa e
direitos humanos e colaborador de KOINONIA
Na virada para o mês de junho, um mês simbólico para os terreiros de candomblé, que louvam Xangô em alusão aos festejos de São João e São Pedro, devido a herança histórica da escravidão e da repressão ao culto africano, de modo que nossos ancestrais equipararam suas divindades aos santos católicos, uma notícia simbólica que representa todo o retrocesso promovido pelo atual governo:
“Nada de Machado de Xangô, a Fundação Palmares vai trocar de logotipo”, anunciam diversos portais de notícia na internet.
Nas Redes Sociais (parece que este governo gosta de decidir tudo por lá) o Presidente da Fundação Palmares anunciou que a retirada do Oxê (Oṣè), o Machado de Xangô, que possui duas lâminas em direções opostas, representando o equilíbrio e sabedoria na aplicação da justiça, se deu pelo fato do Estado ser laico. O que Sérgio Camargo e o todo o Governo Bolsonaro parecem desconhecer é que a representação dos Orixás e seus símbolos são muito mais que uma questão religiosa.
O artigo 3º, inciso I do Decreto 6040/2007 considera como Comunidades Tradicionais “grupos culturalmente diferenciados e que se reconhecem como tais, que possuem formas próprias de organização social, que ocupam e usam território e recursos naturais como condição para sua reprodução cultural, social, religiosa, ancestral e econômica, utilizando conhecimentos, inovações e práticas gerados e transmitidos pela tradição”.
Portanto, não estamos falando de um mero símbolo religioso, ainda que o Oxê sagrado de Pai Xangô seja carregado de dimensão sagrada e espiritual. Estamos falando de um símbolo cultural e histórico pertencente a povos que aqui foram escravizados por trezentos anos.
Outro fato curioso é que a laicidade do Estado não se aplica aos crucifixos presentes nas Instituições Públicas. Há décadas o tema vem sendo discutido no Supremo, e em todas as suas decisões a justiça optou pela manutenção do objeto sagrado por considerar o crucifixo muito mais um objeto tradicional e cultural que propriamente sagrado. O ex-ministro do Supremo, Paulo Brossard, afirmava que a presença do crucifixo era em sinal do Cristo Histórico: um preso político, condenado injustamente.
Por que a mesma lógica não se aplica à Xangô, Orixá da Justiça, e aos seus filhos e filhas injustiçados nestas terras?
Ao que parece, a retirada do Oxê é muito mais profunda do que se imagina. Não só é um apagamento da cultura negra, mas também a representação concreta de uma Era de Injustiças que usurpou o propósito da Fundação Palmares, fundada no contexto de redemocratização do país como uma ferramenta de combate ao racismo reparação histórica para o povo preto.
Desde a chegada de Sérgio Camargo à presidência da Fundação, a Palmares já palco de grandes retrocessos como a retirada do nome de personalidades negras importantes do país, a negação da importância do Dia da Consciência Negra, a agressão à memória de Zumbi dos Palmares e agora, a revogação de uma medida importante para as comunidades Quilombolas que definia como área de proteção ambiental o território ao seu entorno, abrindo a possibilidade para este governo governo literalmente passar a boiada.
Também sobre o Estado Laico tanto evocado, devemos perguntar: Onde ele estava quando Bolsonaro nomeou ministros terrivelmente evangélicos? Onde ele está quando mais de 60% das vítimas de Intolerância Religiosa, compostas por candomblecistas e umbandistas, ficam sem a garantia de liberdade de culto assegurada pela Lei? Onde está o Estado Laico para impor limites às igrejas fundamentalistas que apregoam na TV que nossas divindades são demônio, ou onde está quando o chefe do tráfico manda fechar nossos terreiros?
Os dias são maus, mas estou certo de que o Rei de Oyó não dorme e no seu tempo aplacará as injustiças que vivemos. Quanto a nós, nos resta lutar e principalmente nos mantermos vivos para ver o fim dos nossos algozes. Para todos eles: Káwó Kábíẹ̀sílẹ̀ – Kaô Cabecilê!