Maria Reis: mulher preta de 28 anos de idade (1913)
Daniela Yabeta
Professora do Departamento de História (UNIR-PVH)
Editora do Observatório Quilombola
No último dia 25 de julho comemoramos o Dia Nacional de Tereza de Benguela e da Mulher Negra, Latino Americana e Caribenha. No Brasil, tal comemoração foi instituída através da Lei nº 12.987 de 02 de junho de 2014, promulgada durante o governo da presidenta Dilma Rousseff.
De acordo com a historiadora Ynaê Lopes dos Santos – professora do Departamento de História da Universidade Federal Fluminense (UFF), Tereza de Benguela foi uma das maiores lideranças quilombolas da história do Brasil. Ela vivia no quilombo do Quariterê – que também ficou conhecido como quilombo do Piolho, localizado no que hoje corresponde ao estado do Mato Grosso. Tereza foi morta pelas autoridades colônias em 1770 e, ainda de acordo com Ynaê, sua importância histórica só foi recentemente reconhecida. Se você quer saber mais sobre Tereza e outras tantas mulheres negras, deixo aqui a dica para que sigam o perfil no Instagram “Nossos passos vem de longe” onde encontramos pequenos textos publicados pela historiadora.
Em 25 de julho de 2015, Fabiana Yuka publicou no Portal Geledés a matéria “Hoje na História, 25 de julho, Dia Internacional da Mulher Negra Latino Americana e Caribenha”. No texto ela destaca que além de Tereza, “outras mulheres foram e são importantes para a nossa história”, como elexmplos, ela cita: “Antonieta de Barros, Aqualtune, Theodosina Rosário Ribeiro, Benedita da Silva, Jurema Batista, Leci Brandão, Chiquinha Gonzaga, Ruth de Souza, Elisa Lucinda, Conceição Evaristo, Maria Filipa, Maria Conceição Nazaré (Mãe Menininha do Gantois), Luiza Mahin, Lelia Gonzalez, Dandara, Carolina Maria de Jesus, Elza Soares, Mãe Stella de Oxossi, entre tantas outras”.
Mas hoje eu quero contar a história de Maria Reis, mulher preta de 28 anos que em 13 de fevereiro de 1913 assassinou o marido que a espancava constantemente na frente de seus cinco filhos.
Eu conheci Maria numa das madrugadas de insônia por conta do efeito “quarentena de quase cinco meses COVID19”. Enquanto pesquisava sobre Amazônia nos periódicos da Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional, apareceu a história dela. Segue a notícia:
A NOITE – Sexta-Feira, 14 de fevereiro de 1913
TRAJÉDIA CONJUGAL – Mulher que mata o marido – Uma luta a sabre e a foice
Há muitos indivíduos cujo ciúme feroz pelas esposas dá em consequência tragédias semelhantes a esta que ora nos ocupa.
Marcelino José dos Santos Araújo era um ciumento.
Casara-se há doze anos com Maria Reis e com ela sempre residiu com a melhor das harmonias.
Ele era trabalhador, ela honesta e, amando-se muito, viviam muito felizes.
Ultimamente o casal foi residir na Vila Proletária, lugar denominado Sapê e desde então, Marcelino entrou-se a mostrar-se o mais ciumento dos homens.
Começou a suspeitar de Maria, o ciúme invadiu-lhe o cérebro e toda sua vida desorganizou.
Passou a embriagar-se diariamente e sob os mais fúteis pretextos, quando sob a ação do álcool, espancava barbaramente a mulher.
Esta suportava resignada naturalmente os maus tratos, até que um dia Marcelino, cujo ciúme ainda não havia francamente manifestado, declarou positivamente a mulher que a maltratava porque sabia que ela era desonesta.
Desde essa ocasião, certa de que estava inocente, Maria entrou a reagir aos maus tratos, as ofensas, sendo raro o dia em que uma cena de pugilato não se desenrolasse no tugúrio em que eles habitavam, em companhia de cinco filhos menores.
É que Marcelino, cego de ciúme, havia feito de seu filho mais velho, Herculano José de Araújo, de 6 anos de idade apenas, o espião da própria mãe. E quando o pequeno dizia qualquer coisa contra Maria, o mal homem dava-lhe dinheiro, como a alimentar a maldade da criança.
Esta sem o discernimento suficiente para aquilatar o ignóbil papel que representava, vendo no caso somente uma fonte de renda, diariamente levava ao pai informações mentirosas, dizendo-lhe que Maria recebia na sua ausência, homens em casa.
A situação de Marcelino e Maria tornou-se intolerável. Acreditando piamente nas informações mentirosas do filho, o marido de Maria espancava-a brutalmente, ameaçando-a de morte.
De outras vezes, mesmo sem manifestar-se o ciúme, só por hábito, Marcelino procurava matar a mulher, ao que ela sempre reagia com vantagem.
Estava, pois eminente a perpetração de um crime, e este verificou-se ontem.
Cerca de sete horas da noite, descansava Maria dos afazeres diários, quando encontrou o furioso marido brandindo na destra um sabre ameaçador.
Maria procurou fugir, mas perseguida pelo ébrio, foi alcançada.
Desenrolou-se então, uma cena violenta: – marido e mulher, aquele servindo-se do sabre, esta com as mãos, esmurraram-se a valer.
Súbito, encolerizado pela resistência da rapariga, Marcelino resolveu-se assassiná-la e esta sua resolução declarou a pobre mulher.
Tinha-a segura e ia matá-la, cravando no peito a arma que brandia.
Ela reuniu todas as forças que dispunha e num arranco desesperado, conseguiu ver-se livre de seu algoz, deitando a correr.
Ele, porém, perseguiu-a e já ia deitar-lhe novamente a mão e exercer a sua vingança, quando ela divisou na sua frente, sobre uma mesa, uma foice.
Rápida, sem medir a gravidade de seu gesto, impulsionada somente pelo instinto de conservação, Maria empunhou a foice, fez face ao seu perseguidor e, de um só golpe, abateu-o aos seus pés.
Estava consumido o assassínio!
A arma brandida por Maria alcançou, em cheio, a testa de Marcelino, fraturando o crânio e interessando o encéfalo.
O homem não deu um grito.
Os seus músculos contraíram-se e distenderam-se violentamente e, alguns segundos depois, o marido de Maria estava morto.
Só então Maria mediu a gravidade de sua situação, compreendendo que a fatalidade a fizera uma assassina, mas tendo a consciência de que agira em defesa própria. A martirizada e infeliz mulher resolveu apresentar-se as autoridades policiais do 23º Distrito.
Nesta disposição ela saiu de casa, mas no caminho foi presa pelos guardas noturnos nº 51 e 57, da guarda de Inhaúma, que a apresentaram hoje, às 10h da manhã na delegacia.
Maria lastima profundamente a sua triste sorte e mostra-se arrependida de ter reagido contra a brutalidade do marido, que era preto de 35 anos, e guarda cancela destacado na estação de Rio das Pedras.
Em sua companhia estava a sua filha, Maria Antônia, de 5 anos de idade, que foi testemunha da trágica ocorrência e que, assustada, ainda conta detalhadamente a quem a interroga.
Maria Reis é também preta, conta 28 anos de idade, e depois de prestar o seu depoimento, foi recolhida ao xadrez.
Mais de 100 anos após o caso de Maria Reis, que nasceu em 1885, no período de vigência da escravidão no Brasil, dados do Instituto de Pesquisa Econômica e Aplicada (Ipea) mostram que a taxa de homicídios de mulheres negras é maior e cresce mais que a das mulheres não negras. Em 05 de junho de 2019, uma notícia publicada por Vinicius Lisboa – repórter da Agência Brasil – mostra que entre 2007 e 2017 a taxa de homicídios para mulheres negras cresceu 29,9%, enquanto a das não negras aumentou 1,6%.
Sobre o encarceramento feminino no Brasil, Rafa Santos publicou uma matéria no portal Consultor Jurídico sobre o relatório “Mães Livres – A maternidade invisível no Sistemas de Justiça” do Instituto de Defesa do Direito de Defesa (IDDD)”, produzido em 2019. De acordo com o documento 63,5% das mulheres encarceradas são negras, 47,3% são jovens (entre 18 e 29 anos), 74% são mães e 56% tem dois ou mais filhos.
Ou seja, Maria Reis enquadra-se perfeitamente no perfil dessas mulheres. Assim como muitas que fazem parte dessas estatísticas, não sabemos o destino de seus cinco filhos.
Por tudo isso, escrevi essa coluna em homenagem a Maria Reis. Meu desejo é registrar a atualidade de sua história, garantir que ela seja conhecida por todos que aqui passarem e desejar que ela jamais seja esquecida.
Não acredito em consciências. No julho das pretas ela apareceu para mim e eu precisava dividir com vocês.