“Você tem fome de quê? Você tem sede de quê?”
Ana Gualberto
Iyá Oju Omo Ilê Adufé
Coordenadora de ações com comunidades tradicionais de KOINONIA
Editora do Observatório Quilombola
Desde que começou a pandemia a equipe de KOINONIA tem sido desafiada a repensar seu propósito quanto organização de assessoria que atua nos processos de formação e produção de informação e documentação, já que nossa prática é 75% de encontros e relações direta, com as comunidades e pessoas. Assim buscamos levantar informações, produzir e reproduzir materiais sobre prevenção, práticas de higienização, combater notícias falsas e tudo mais que as tecnologias nos permitem fazer a distância, garantindo assim a segurança da equipe e das pessoas das comunidades.
Fomos provocados por lideranças de terreiros para contribuir com ações emergenciais, vocês podem ver mais detalhes na notícia que saiu em nossos veículos de comunicação. Mas o que quero compartilhar com vocês é como essa ação de distribuição de alimentos se multiplicou.
Quando organizamos a doação que foi feita para as 11 iniciativas, calculamos atingir 150 famílias, aproximadamente 750 pessoas, por meio de ação direta dos terreiros e coletivos. Isto é: quem organizou a distribuição foram às lideranças dos terreiros ou grupos. Definiram critérios e assim montaram suas listas de famílias contempladas com esta ação. Pois bem, o negócio quase dobrou de tamanho.
Não sei o que acontece, mas quando a gente coloca uma coisa na mão dessas Iyás e Babás, essas mãos mágicas do cuidado, acolhimento e do amor, a magia acontece quase que automaticamente. Parece que os alimentos se multiplicaram pela força do amor. Não é atoa que no final de nossas festas em nossos ilês, kwes, abassás, comemos juntos, é um momento sagrado, em ioruba Ìyánlé (fome da casa). Nada em nossa religião é atoa. Lá também a comida se multiplica e dá para todas as pessoas, é impressionante.
De cara quando as mensagens foram chegando para mim, contado o número de cestas entregues, as imagens das pessoas e um pouco das histórias de vida, me veio na cabeça a estória bíblica da multiplicação dos peixes e pães. Essa estória que narrada tantas e tantas vezes, demonstra que quando se tem amor e boa vontade, podemos atingir muito mais gente do que se vê de imediato.
Vocês podem pensar aí: Ana, sua louca! Tá comparando as Iyás e Babás a Jesus? Não minha gente! Tenha calma, acompanhe meu pensamento e se permita ir além das palavras aqui escritas.
Os terreiros são espaços de acolhimento, cuidado e amor, já afirmei isso em outros textos e quem quiser compreender o que estou falando é só visitar um, passar um dia lá. O sentimento que moveu e move essas lideranças religiosas para buscar doações de alimentos para contribuir com a manutenção da vida dessas pessoas é o mesmo que moveu todas as ações de transgressão do mundo: o amor. O mesmo que moveu Jesus, o exemplo maior de amor para a sociedade judaica cristã, e que todos nós conhecemos por esta referência.
O amor é revolucionário, é sentimento que move as pessoas a fazerem coisas que podem parecer impossíveis.
A ação de amor praticada por estas comunidades religiosas é uma amostra da força que elas têm, da capilaridade que suas ações têm. Mostram um conhecimento profundo da realidade onde estão inseridas. Conhecem as pessoas que estão invisíveis ao poder público, as pessoas que sofrem violências cotidianas a ponto de não ter forças para buscar ajuda, mas que de algum jeito essa ajuda vai chegar lá. Isso é prova de amor e de compromisso com a comunidade para além da família religiosa.
Compartilho com vocês esta narrativa de amor revolucionário para nos inspirar na superação desta situação de solidão que o isolamento social nos leva. Podemos estar em casa, para quem pode estar em casa, mas não podemos nos isolar do que está acontecendo no mundo. A solidariedade, o amor e cuidado devem andar juntos, ser nossa tríade de apoio neste momento.
Desejo que tenhamos essa tríade para nos embasar, mas é fundamental que continuemos a buscar uma sociedade onde a gente não precise distribuir cestas básicas, onde não tenhamos mais invisíveis aos olhos e ação do poder público, onde verdadeiramente sejamos todas pessoas sujeitas de direitos. Não podemos perder de vista a sociedade que vamos construir, onde valores como solidariedade, cuidado e amor serão a base.