Sobre a luta cotidiana de ser mulher negra
Ana Gualberto
Iyá Oju Omo Ilê Adufé
Coordenadora de ações com comunidades tradicionais de KOINONIA
Editora do Observatório Quilombola
“(…) Aqueles homens ali dizem que as mulheres precisam de ajuda para subir em carruagens, e devem ser carregadas para atravessar valas, e que merecem o melhor lugar onde quer que estejam. Ninguém jamais me ajudou a subir em carruagens, ou a saltar sobre poças de lama, e nunca me ofereceram melhor lugar algum! E não sou uma mulher? Olhem para mim? Olhem para meus braços! Eu arei e plantei, e juntei a colheita nos celeiros, e homem algum poderia estar à minha frente. E não sou uma mulher? Eu poderia trabalhar tanto e comer tanto quanto qualquer homem – desde que eu tivesse oportunidade para isso – e suportar o açoite também! E não sou uma mulher? Eu pari treze filhos e vi a maioria deles ser vendida para a escravidão, e quando eu clamei com a minha dor de mãe, ninguém a não ser Jesus me ouviu! E não sou uma mulher?…” Sojourner Truth, em 1851[1]
Começo meu texto trazendo parte deste discurso de Sojourner Truth de 1851, que bem poderia ser escrito hoje sem muita diferença. Continuamos a fazer de tudo: trabalhar, parir e criar nossos filhos sozinhas, na maioria das vezes, buscar formas cotidianas de reinventar-nos para não cair no banzo, lidar com a solidão e com nossas subjetividades, isso tudo mantendo a “força” que nos é cobrada cotidianamente.
Poderia eu escrever um texto falando de mudanças na sociedade que apontem positivamente para a superação de problemas que podem ser identificados pelas relações desiguais de gênero. Mas isso não é verdade. A gente aqui no Brasil vive uma epidemia de violência desde o período da invasão do Brasil por Portugal. Esta epidemia tem ondas, e estamos num dos períodos de pico. E a violência contras as mulheres tem crescido assustadoramente. Mas não são todas as mulheres, existe um grupo mais vulnerabilizado. Como se diz na Bahia: “1 real de big big para quem acertar!”
Ah! Pois, é isso mesmo: nós mulheres negras continuamos no topo da lista de diversas formas de violência. É só consultar o mapa da violência[2].
Mas Ana, por que você está falando sobre isso, logo no mês de março, quando temos o dia da mulher? Ora, ora, falar sobre este tema deveria ser diário até que superemos. Falar deste tema é falar do racismo estrutural que nos mantém em situação constante de vulnerabilidade. Nós mulheres negras somos as mais vitimadas e excluídas socialmente. Não adianta chegar em março e receber flores ou tapinha nos ombros com “feliz dia da mulher”, queremos é que os homens sejam nossos aliados para arrancarmos essa crosta social que está presente em toda a sociedade brasileira, inclusive nos homens negros, que buscam nos manter na base da pirâmide.
Como nos ensinou Angela Davis, “quando a mulher negra se movimenta, toda a estrutura da sociedade se movimenta com ela”. Nunca estivemos paradas e continuamos a nos movimentar. Costumo dizer que a pratica da luta social, do desafiar as estruturas impostas é inerente às mulheres negras. Se quiser chamar isso de feminismo negro, de mulherismo, é com você. O que afirmo é que as mulheres negras sempre desafiaram as estruturas que nos excluíam e continuam a desafiar. Bebemos na herança deixada por nossas ancestrais, nos alimentamos na força das Ayabas, termo utilizado para definir todos os orixás femininos em geral, para nos mantermos vivas levando as nossas e nossos junto conosco.
Aqui em Salvador tenho a oportunidade de conviver com mulheres negras maravilhosas que me ensinam a cada dia. Agradeço o acolhimento das irmãs da Rede de Mulheres Negras da Bahia[3] e da Rede de Mulheres de Terreiro[4], Mojubá por ser parte. É fundamental lembrar que me entender como mulher negra foi parte do meu cotidiano familiar, onde Lucia Maria, minha mãe, mulher negra nordestina nunca teve papas na língua para preparar suas filhas para os desafios de apenas ser e existir nessa sociedade. Aprendi muito cedo que o racismo sempre tentaria e continuaria a tentar me destruir, me desumanizar e me usar como massa de manobra. Quando a gente tem essas informações buscamos ferramentas de enfrentamento e também de sobrevivência.
Manter-nos em coletivos, em egbes (comunidades no yorubá), é a meu ver fundamental. Juntas, vamos muito mais longe. Juntas, podemos desestruturar essa pirâmide absurda na qual a sociedade está estruturada. Juntas, lutaremos para transformar a representação da estrutura social em um circulo, onde possamos de verdade viver de forma igualitária.
Dia 8 estaremos nas ruas como sempre estivemos!
Não vão nos calar e muito menos nos parar!
Salve as Ayabas!
[1] https://www.geledes.org.br/e-nao-sou-uma-mulher-sojourner-truth/
[2] https://mapadaviolenciadegenero.com.br/
[3] A Rede de Mulheres Negras da Bahia é um espaço político de organização e fortalecimento coletivo de mulheres negras, que trabalham pela construção da igualdade social, racial, gênero e pelo Bem Viver. https://www.facebook.com/pg/redemulheresnegrasba/about/?ref=page_internal
[4] http://mulheresdeterreirodabahia.blogspot.com/