Mineração espalha medo nas terras quilombolas localizadas no estado de Mato Grosso
“Quando conseguimos voltar para as nossas terras, na década de 1980, eram tantos buracos e tanto barro correndo por todos os lados que mais parecia um lamaçal. Quase não existiam mais rios”, explica Gonçalina Eva Almeida, professora e uma das lideranças do Quilombo de Mata Cavalo, em Nossa Senhora do Livramento, a 60 quilômetros de Cuiabá, no limite entre o Cerrado e o Pantanal.
As terras de que ela fala foram doadas em 1883 pela proprietária de uma antiga sesmaria a seus escravos alforriados, portanto legítimas. Ao longo do século 20, porém, foram palco de invasões e intensos conflitos com fazendeiros e políticos locais, que acabaram por expulsar os quilombolas. Estes só voltaram após interferência da Justiça e da Fundação Cultural Palmares em seu favor, início de um processo que culminou em 2018, quando as 418 famílias que lá vivem foram reconhecidas, por meio de portaria do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), como beneficiárias do Programa Nacional de Reforma Agrária. É o único quilombo de Mato Grosso a possuir tal título.
O reconhecimento, contudo, não impede que as famílias continuem sendo vítimas de conflitos territoriais – agora com as mineradoras que ali se instalaram enquanto os quilombolas estavam afastados de suas terras. “Sempre foi um custo tirar os invasores daqui”, diz Ivone Conceição de Arruda, da Associação dos Moradores do Núcleo Ponte de Estiva, uma das comunidades do Quilombo de Mata Cavalo. “O governo até liberou dinheiro de indenização, mas alguns não aceitam. Às vezes colocamos a nossa vida em risco nesses embates, pois são pessoas poderosas.”
A legislação brasileira proíbe a mineração em terras quilombolas sem consulta aos moradores locais e exige estudos de impacto ambiental. Segundo a Fundação Cultural Palmares, o licenciamento de toda atividade, obra ou empreendimento que afete alguma comunidade quilombola é regulado pela Portaria Interministerial nº 60/2015 e pela Instrução Normativa FCP nº 01/2018. A consulta às comunidades está prevista nos termos da Convenção nº 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT).
“Nunca fomos consultados”, diz Arlete Pereira Leite, líder do núcleo de Mata Cavalo de Baixo. “Essas empresas entram na área e dizem que têm o direito ao subsolo e que podem explorar. Muitos têm seguranças armados. É muito perigoso brigar com eles. Seguimos com muito medo.” Os quilombolas chegaram a denunciar um dos empreendimentos em 2018 ao Ministério Público Federal, mas, apesar da ação na Justiça Federal, a empresa mantém maquinários na área quilombola.
O Quilombo de Mata Cavalo tem 14.748 hectares e guarda importantes mananciais e remanescentes de Cerrado em uma região intensamente desmatada. Entre as principais ameaças que assombram a zona estão a pecuária, a monocultura de grãos e a mineração. “O problema da mineração, principalmente de ouro, é a contaminação do lençol freático e dos rios pelo azougue, a liga desse minério. Se você sobrevoar essa região, ficará chocado com o número de crateras. Parece a Lua”, afirma Francisco Arruda Machado, biólogo e perito do Ministério Público do Estado.
Um rio de cascalho
A região é uma das principais províncias auríferas do país. O ouro, inclusive, está na própria origem de Mato Grosso: em 1718, bandeirantes paulistas encontraram o minério no Rio Coxipó, onde estabeleceram um garimpo que depois seria o embrião da cidade de Cuiabá. Em Nossa Senhora do Livramento, onde está o Quilombo de Mata Cavalo, o primeiro garimpo data de 1730, quando foi descoberto ouro no Ribeirão dos Cocais.
Desde então, os dejetos da mineração do ouro vêm sendo estocados a céu aberto ou em diques que lembram vulcões de pedras. É possível ver várias dessas construções na estrada que liga Poconé a Cuiabá (e que passa por Nossa Senhora do Livramento).
“Mato Grosso é o quinto em número de barragens [de rejeitos da mineração de ouro] no Brasil”, diz Marcio Correia de Amorim, chefe do serviço de segurança de barragens de mineração da Agência Nacional de Mineração de Mato Grosso (ANM/MT). “Mas aqui, diferentemente de Minas Gerais, onde a topografia de morros facilita o barramento, são erguidas estruturas na forma de pirâmides de quatro faces. A segurança depende de muita técnica.”
Em 1 de outubro, a parede sul de uma dessas montanhas de cascalho rompeu em Nossa Senhora do Livramento. O acidente com a barragem TB01, da empresa VM Mineração, despejou quase 1 milhão de metros cúbicos de dejetos de mineração e cascalho. A lama rapidamente se espalhou por uma superfície de 25 hectares e chegou a atingir Áreas de Preservação Permanente de Cerrado. Por pouco não ocorreu um acidente similar ao de Brumadinho, que em janeiro de 2019 matou cerca de 250 pessoas em Minas Gerais. Apenas dois trabalhadores da VM tiveram escoriações leves.
Até o dia do acidente, havia informações desencontradas sobre a quantidade de dejetos contidos na barragem. Sonia Monteiro, professora e vice-presidente da Associação da Comunidade de Cedral de Cima e Região, em Mata Cavalo, denunciava há anos a situação. “Sempre rolou pedra de lá de cima para a estrada. Cinco dias antes do rompimento, um engenheiro deu um laudo dizendo que estava seguro. No dia do acidente, só não morreram crianças porque o ônibus escolar passou às 5 da manhã e o rompimento foi às 9”, afirma. A comunidade onde Sonia mora é vizinha à TB01.
Apesar de suas dimensões, a barragem da VM foi erguida ao lado de uma estrada vicinal. “É a Estrada do Boava, por onde passa o ônibus escolar das comunidades”, confirmou o Secretário de Obras do município de Nossa Senhora do Livramento, Paulo de Caraca, durante uma reunião sobre os danos do acidente, na sede da Prefeitura, no dia 14 de outubro. Mesmo assim, a TB01 era considerada de baixo risco, por isso nunca foi instalado um sistema de alerta de rompimentos. Cabe à empresa comunicar à ANM sobre o volume de rejeitos.
O proprietário da VM Mineração afirma que informou em maio sobre a quantidade de dejetos que existiam na TB01. “A questão é que não conseguimos atualizar os sistemas da ANM, mas informamos que estávamos quase na cota máxima. Fomos fiscalizados no dia 25 de setembro e estava tudo atestado pela própria agência”, diz Marcelo Takahashi.
Apesar da visível proximidade, nem a estrada vicinal e nem o Quilombo de Mata Cavalo foram reconhecidos pela Secretaria do Estado de Meio Ambiente (Sema/MT) de Mato Grosso. O órgão expediu Licença de Operação para a VM até 2020, mas no documento não há condicionantes de segurança como o alerta à população ou exigências de medidas sociais à comunidade.
De acordo com a entidade, o sistema não pôde verificar a existência de quilombolas na região. “O atual sistema e a base georreferenciada da Sema não alertam sobre comunidades quilombolas no entorno”, afirmou a secretaria em nota após ser questionada. O dito sistema, de acordo com o órgão, relata apenas a existência de Terras Indígenas. “Quando há Tis nas imediações do empreendimento, a Secretaria envia ofício para Fundação Nacional do Índio (Funai) e o processo passa por avaliação no Conselho Estadual de Meio Ambiente (Consema).” Terras quilombolas, nesse caso, permanecem invisíveis.
A secretaria também afirmou que não verificou nenhuma via pública na proximidade da barragem TB01. “Nas bases de referência da Sema, a estrada não consta como vicinal, mas como da própria mineradora, sendo amplamente utilizada pela população local”.
A falta de reconhecimento da proximidade com a estrada vicinal foi um dos componentes que fez a TB01 ser considerada como de baixo risco. “Teríamos mudado a classificação da barragem para dano potencial alto e solicitado a instalação de alguns componentes de segurança, como o sistema de alerta à população”, afirma Marcio Amorim da ANM/MT.
Segundo dados do Governo Federal, existem outras 22 barragens de rejeitos de mineração em Nossa Senhora do Livramento e ainda 26 em Poconé, cidade vizinha. Apenas duas têm cadastro de dano potencial alto e são reconhecidas como potenciais geradoras de mortes em caso de rompimentos. Todas as outras são como a barragem da VM, consideradas de baixo risco (até o acidente de outubro).
Quilombos e barragens, lado a lado
A situação de risco pode ser similar em muitas outras áreas de mineração, mas o governo sequer tem informações suficientes. “Em Mato Grosso há 52 barragens não cadastradas no Serviço de Segurança de Barragens de Mineração”, diz Marcio Amorim. Apesar de poderem ser embargadas e dos proprietários responderem processos civis e criminais, as ações para que essas empresas sejam fiscalizadas e punidas não foram informadas pela ANM.
No caso das comunidades quilombolas, nem a proximidade com as áreas de mineração é considerada. Em Nossa Senhora do Livramento, além do Quilombo de Mata Cavalo, há outras seis Comunidades Remanescentes de Quilombos (CRQs) certificadas pela Fundação Cultural Palmares. A vizinha Poconé, a 65 quilômetros, onde está grande parte das empresas de extração de ouro, tem 29 dessas comunidades. Juntos, os dois municípios concentram quase metade das 78 comunidades quilombolas registradas em Mato Grosso – todas no sul do estado.
Apesar do número expressivo de quilombos e barragens convivendo lado a lado, porém, a Fundação Cultural Palmares e o Incra afirmam que nunca houve nenhuma consulta às entidades sobre a existência de comunidades quilombolas nessas regiões para qualquer licenciamento ambiental de empreendimento de mineração.
No caso da barragem no território do Quilombo de Mata Cavalo, segundo o procurador Ricardo Paes Ardenghi, o Ministério Público Federal não tomou nenhuma providência sobre o licenciamento da MV Mineração porque “não houve manifestações da Fundação Palmares e do Incra”. “Não há nenhuma representação, notícia, denúncia ou reclamação sobre o tema, a não ser o garimpo ilegal realizado por indivíduos no interior do quilombo, o que já é objeto do Inquérito Civil”, afirma.
Quase um mês após o acidente da VM, os representantes do Governo Federal também ainda não garantem a segurança da barragem TB01 à população. “Está estável, controlada, mas ainda falta o plano de contingência para dizermos que está segura. Não há ainda a declaração de estabilidade para a VM”, explica Márcio Amorim, da ANM. O prazo para que exista alguma certeza é até 15 de novembro, ou mais. Até lá, a população vai conviver com incertezas e a proximidade do período das chuvas.
“Se houver contaminação nos dejetos, a água da chuva vai espalhar todos esses detritos através da lixiviação para os rios mais próximos. A fauna pode ser contaminada e a saúde da população ficará em risco”, alerta Francisco Machado, do Ministério Público do Estado.
Amostras de água no Ribeirão Bento Gomes foram coletadas pela Secretaria Estadual de Saúde. Os resultados devem ser apresentados em um prazo de 30 dias. O curso d’água está a 6 quilômetros do acidente e é uma das principais fontes de abastecimento do município de Poconé. O rio também forma as primeiras baías (lagoas) da Transpantaneira, como é chamada a estrada turística que liga Poconé a Porto Jofre, na divisa com Mato Grosso do Sul. A rodovia atravessa por 145 quilômetros o Pantanal, um dos biomas de maior biodiversidade do planeta, refúgio de mais de 500 espécies de aves e mamíferos.
Outra questão sem respostas é sobre as responsabilidades dos danos futuros. Não há uma definição sobre como os detritos da TB01 serão removidos da zona. “Quem vai limpar essa área depois que essas mineradoras forem embora da região. Ou só vamos ficar com os buracos?”, questiona Sonia Monteiro, professora no Quilombo de Mata Cavalo. No caso da VM, a terra onde aconteceu o acidente é arrendada. A mineradora apenas exerce a atividade em uma propriedade alugada de uma família tradicional local.
A recuperação das áreas de mineração pode ser economicamente inviável. A regeneração do Cerrado é considerada mais fácil do que em regiões como a Amazônia, mas são poucos os exemplos de sucesso. “No caso de áreas de mineração, a estrutura do solo é toda alterada. As camadas mais profundas, de minerais pouco assimiláveis pelas plantas, são trazidas para a superfície. O processo deve envolver primeiramente a reconstituição do solo, de forma que ele volte a ter minerais e material orgânico assimiláveis pelas plantas”, explica Vinícius Silgueiro, engenheiro florestal e coordenador de Geotecnologias do Instituto Centro De Vida (ICV). “E isso é muito difícil de fazer. Requer investimento e acompanhamento técnico constante”, conclui.
Por: Juliana Arini/Mongabay
FONTE: Poconet Notícias em 01/11/2019