Acordo de Salvaguardas em Alcântara pode ser aprovado em cenário de insegurança jurídica para quilombolas
Congresso desrespeita recomendações de consulta prévia e Estado brasileiro não cumpre obrigação de regularizar titularidade fundiária, enquanto trabalha em projeto de expansão
Por Lilian Milena
Jornal GGN – O Acordo de Salvaguardas Tecnológicas (AST), para uso do Centro de Lançamento de Alcântara (CLA) pelos Estados Unidos, está prestes a ser aprovado no Congresso sem garantia de proteção à permanência de comunidades quilombolas que vivem nas regiões do entorno da área de lançamento para foguetes e satélites.
O alerta é do Movimento dos Atingidos pela Base Espacial de Alcântara (Mabe), feito ao GGN, e encontra aderência em documentos revelados pelo jornal Folha de S.Paulo, apesar de o ministro da Ciência e Tecnologia, Marcos Pontes, afirmar que não existe proposta de expansão da área.
“Não somos contra a permanência do Centro de Lançamentos, mas exigimos que a área seja reconhecida como sendo das comunidades quilombolas e não aceitamos a expansão da área”, afirma Danilo Serejo, quilombola e consultor jurídico do Mabe.
A ilha de Alcântara, no Maranhão, possui uma das maiores concentrações de comunidades quilombolas do Brasil, formada por negros que, entre os séculos 16 e 19, fugiram da repressão durante o período de escravidão. Eles formaram organizações próprias e baseadas na produção agrária de subsistência.
Alcântara também está localizada em uma área considerada uma das melhores do mundo, pela sua localização geográfica, próxima à Linha do Equador, para o lançamento de foguetes, permitindo uma economia de até 30% do combustível necessário para levar um desses equipamentos à órbita terrestre. Por conta disso, em meados dos anos 1980, o governo da ditadura militar criou o Centro de Lançamento de Alcântara (CLA). Na época, 312 famílias quilombolas foram transferidas compulsoriamente para o litoral de Alcântara.
“Jogaram essas famílias em agrovilas, mas em áreas impróprias para o plantio. A base de sustentação delas é a agricultura, e isso trouxe enormes prejuízos”, conta o deputado Bira do Pindaré (PSB-MA), o único na Câmara dos Deputados, que compõe a bancada maranhense, a votar contra o Acordo de Salvaguardas. A proposta foi aprovada por 329 votos a favor e 86 contra, na casa do Legislativo, no dia 22 de outubro, e ainda precisa da aprovação no Senado.
Bira do Pindaré explica que foi contra o acordo porque a Câmara não realizou audiências de consultas com a população quilombola, ferindo recomendações da legislação nacional e internacional sobre o tema.
Ele lembra que, às vésperas da votação, a Comissão Interamericana de Direitos Humanos da OEA (Organização dos Estados Americanos) se manifestou pedindo a consulta prévia das famílias quilombolas sobre o AST. O Ministério Público Federal também entregou aos parlamentares um relatório com as mesmas recomendações.
“Nós estamos discutindo um acordo de proteção tecnológica, com os Estados Unidos, que é o país mais poderoso do mundo, e não somos capazes de discutir um acordo de proteção social, com o nosso povo, milhares de pessoas, centenas de famílias, ameaçadas de expulsão?”, questiona o parlamentar.
O quilombola Serejo conta que, na época da remoção das famílias, nos anos 80, o governo brasileiro fez diversos acordos com as comunidades, registrados em cartórios. “Esses acordos nunca foram cumpridos. A maioria das famílias desapropriadas compulsoriamente não foi indenizada e muitas já morreram”, pontua.
Acordo tem apoio de comunidade científica do Maranhão
O governo federal defende que o Acordo é necessário para que o Brasil volte a expandir seu programa aeroespacial. De fato, em mais de três décadas da existência, o CLA tem um baixo histórico de uso e exploração. Os fatores que explicam a morosidade do programa aeroespacial brasileiro são vários, incluem desde histórico de baixos e inconstantes investimentos no setor, até o trágico acidente que matou 21 cientistas, em 2003, com a explosão do terceiro protótipo do Veículo Lançador de Satélites (VLS-3), estrela do programa espacial brasileiro.
O Acordo de Salvaguardas também é defendido pelo governador do Estado do Maranhão, Flávio Dino (PCdoB), e por membros da comunidade científica local. Semanas antes da votação do documento na Câmara dos Deputados, integrantes da comunidade acadêmica do Maranhão chegaram a divulgar um manifesto de apoio ao acordo com os Estados Unidos.
“O AST abre possibilidade de utilização comercial do Centro Espacial de Alcântara, com elevado mercado potencial no mundo. Cria, ainda, a possibilidade de retomada de uma política aeroespacial em condições de elevar o papel do Brasil no contexto global”, diz a nota assinada por representantes de entidades como Universidade Federal do Maranhão, Instituto Federal do Maranhão e Fundação de Amparo à Pesquisa e Desenvolvimento Científico e Tecnológico do estado.
Sem titularidade, quilombolas não deliberam sobre centro espacial
A Base de Alcântara ocupa hoje um território de 62 mil hectares. “A atual estrutura do Centro de Lançamento de Alcântara, da forma que está colocada, não afeta a vida das comunidades quilombolas. Mas, a expansão do Centro de Lançamento, está presente nessa discussão desde a década de 80”, pontua Serejo.
Para ele, a demora do Estado brasileiro em conceder a titularidade da área aos quilombolas tem como objetivo afastar essa população das deliberações a respeito do uso do CLA.
Serejo lembra que, em 2018, o Supremo Tribunal Federal pacificou o tema sobre o direito de propriedade coletiva das comunidades quilombolas, ao julgar uma Ação Direta de Inconstitucionalidade, proposta pelo DEM, sobre o Decreto 4887/2013, que regulamenta os procedimentos administrativos do Artigo 68 da Constituição, que protege os territórios das comunidades quilombola e indígenas.
“No caso específico de Alcântara, existe uma ação proposta do Ministério Público Federal, desde 1999, que está em curso, e, nos autos dessa ação, há uma decisão impondo à União o dever se titular essas terras em nome das comunidades quilombolas de Alcântara”, completa Serejo.
“Esse é inclusive um dos agravantes do Acordo de Salvaguardas, porque o acordo, caso passe no Senado, vai ser aprovado em um cenário de total insegurança jurídica para as comunidades quilombolas quanto ao seu território, o que nos prejudica na nossa autonomia de sentar com autoridades do governo brasileiro para, inclusive, decidir sobre o nosso futuro”, completa o quilombola.
Serejo destaca ainda que a demora em conferir a titularidade fere a Convenção 196 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), sobre povos indígenas e tribais, da qual o Brasil se tornou signatário, em 2004.
“Povo nenhum tem autonomia jurídica para discutir sobre seu futuro, sua vida, sem a certeza jurídica do seu território”, reforça.
Um plano de expansão em andamento
“Embora o governo Federal e os deputados, inclusive, do Maranhão, e o próprio Flávio Dino, que é o governador do Estado, digam que o Acordo [de Salvaguardas] não tem a ver com a expansão e não fale sobre isso, uma matéria da Folha de S.Paulo trouxe à tona uma série de documentos que comprovam um plano expansão do Centro de Lançamento sobre o território das comunidades em mais 12 mil hectares, que é todo o litoral do município de Alcântara”, completa ele.
No dia 11 de outubro, o jornal divulgou uma reportagem com documentos mostrando que o governo Bolsonaro tem um plano de remoção de cerca de 350 famílias quilombolas no Maranhão. O trabalho mobiliza onze ministérios do Planalto, além de órgãos como Incra e Fundação Palmares.
“Será necessário realizar o deslocamento de famílias (aproximadamente 350) de alguns quilombos de Alcântara para áreas mais distantes da faixa litorânea, onde outras comunidades já se encontram situados”, diz um trecho do relatório obtido pela Folha.
O material mostra ainda que o grupo de trabalho ministerial montou um plano de marketing para convencer a população de Alcântara sobre a necessidade de deslocamento. A campanha usa hashtags com frases como “Alcântara Ajudando o Brasil” e “Alcântara, gerando benefícios a todos!”, ao lado de moradores negros sorridentes.
A proposta do governo é ampliar a área do CLA para alugar espaços de operações de outros países, não apenas para os EUA.
‘Só em cima do meu cadáver’
Recentemente, o governador do Maranhão, Flávio Dino, disse em entrevista ao portal Jornalistas Livres que o Acordo de Salvaguardas Tecnológicas com os Estados Unidos “é suficiente para sua exploração comercial. Já houve remoções de algumas centenas de famílias há décadas, é bom frisar, décadas”, declarou.
“Aí alguém diz ‘pode ser que um dia’, bom, se um dia se colocar esse problema, e eu estiver vivo, estarei contrário a uma nova remoção”, garantiu.
De fato, o Acordo de Salvaguardas, em si, não traz nenhum dispositivo de ampliação do Centro de Lançamentos. O que preocupa os quilombolas, são outras propostas nesse sentido, em construção pelo governo federal, como mostrou a reportagem da Folha.
Também em entrevista ao GGN, o deputado Marcos Jerry (PCdoB-MA), vice-presidente da Comissão de Ciência e Tecnologia, Comunicação e Informática, na Câmara dos Deputados, que votou pela aprovação do Acordo de Salvaguardas, reforçou que o documento não prevê remoção de famílias quilombolas.
“O acordo é essencialmente um acordo de patentes, ou seja, de salvaguardas às tecnologias produzidas pelos Estados Unidos. Ou seja, vários países do mundo fazem acordos bilaterais nesse sentido de proteger suas tecnologia”.
“Na questão do perímetro, a área do Centro Espacial de Alcântara é suficiente para as atividades aeroespaciais previstas, que serão organizadas. Havendo, num futuro qualquer, possibilidade de remanejamento das áreas, eu digo e reitero, serei, junto com meu partido, e também esta é a posição do governador Flávio Dino, o primeiro na linha de frente para impedir que haja remanejamento de famílias”, completou.
Possível judicialização
O deputado Bira do Pindaré diz que está em conversas com senadores para tentar garantir uma alteração no texto do Acordo de Salvaguardas que inclua uma consulta prévia às comunidades quilombolas. Caso o documento seja aprovado como está, ele não descarta a judicialização da proposta.
“Temos muitas frentes de batalha. Via judiciário, o próprio Ministério Público deve agir, assim como a Defensoria Pública e as entidades representativas dos povos tradicionais, além dos partidos políticos”.
“É preciso recuperar o processo de certificação dessas comunidades. Nós temos mais de 10 mil comunidades quilombolas no Brasil. Cerca de 3 mil tem reconhecimento formal, da sua existência enquanto identidade étnica. Então, é preciso que a gente acelere isso, acelere a questão fundiária, porque não adiante ter a certificação e não ter a titulação, que é outro problema grave que não avança no Brasil”, destaca.
“Eu tenho absoluta segurança que, se a gente sentar numa mesa, com os representantes das comunidades, para respeitar todo o processo de consulta, os quilombolas vão concordar com o Acordo de Salvaguardas, e vai ficar tudo em paz”, concluiu.
FONTE: Jornal GGN em 07/11/2019