Em carta, sacerdote do candomblé descreve ameaças que sofreu de traficantes na baixada
Por Cíntia Cruz
Um relato dramático que expõe a vulnerabilidade de sacerdotes de religiões de matrizes africanas na Baixada Fluminense. Um deles entregou à Comissão de Combate à Intolerância Religiosa (CCIR) uma carta em que descrevia como foi ameaçado por traficantes no local onde mora e tem seu templo religioso.
“Indivíduos armados com armas de fogo pequenas. Eles aparentavam ter entre 15 e 17 anos e falaram com tom de ameaça: Ninguém quer mais macumba aqui! Tem uma semana para acabar com isso tudo! e saíram efetuando disparos para o alto. Os rituais foram interrompidos’’, escreveu, assustado, o religioso.
Só este ano, na Baixada Fluminense, 38 terreiros sofreram intolerância religiosa, segundo informação da CCIR com base em números da Agen-afro. Foram 15 em Duque de Caxias, aproximadamente dez em Belford Roxo, cerca de dez em São João de Meriti e três em Nova Iguaçu.
O Ministério Público Federal (MPF) enviou ofício ao governador do Rio de Janeiro Wilson Witzel requerendo, com urgência, a adoção de providências no âmbito da segurança pública e a realização de uma audiência para tratar dos casos de intolerância religiosa na região da Baixada Fluminense. No documento também estão presentes alguns relatos de representantes das comunidades. Segundo denúncia que chegou ao MPF, um grupo de traficantes chefiados por um pastor teria percorrido 15 barracões de candomblé e umbanda localizados no município e ordenado a cessação de qualquer atividade religiosa que ocorresse no local.
— É lamentável um momento como esse, e nós não estamos vendo uma atitude forte das autoridades para coibir esse tipo de ameaça contra os religiosos de matriz africana. Acredito que está na hora de federalizar esses crimes. Só assim teremos uma atitude forte e firme das autoridades públicas — avalia o babalaô Ivanir dos Santos, interlocutor da CCIR.
Na região, outros religiosos se preocupam com as ameaças sofridas por aqueles que consideram “irmãos de axé’’. Ou seja, pessoas que seguem a mesma religião.
— Tenho meu barracão há 16 anos e nunca passei por nenhuma situação parecida, mas me solidarizo com eles. Fica uma onda de medo e apreensão porque pode acontecer com qualquer um — afirma a ialorixá Nádia de Oyá, do Ilê Axê A Nifé Orixá (Casa de Força Que Ama Orixás), no bairro Palmares, em Nova Iguaçu.
Uma das sacerdotisas de candomblé mais antigas no bairro Palmares, a ialorixá Yara de Oxumarê tem o terreiro Associação São Bartolomeu Alaketu Ilê Axé Oxumarê há mais de 30 anos. Ela conta que é preciso a união de religiosos para combater esses crimes e atos de intolerância.
— Quando um babalorixá ou ialorixá é expulso, ele não sai só de um templo sagrado, sai da própria casa. É um assunto sério que precisamos rever, nos unir e combater — afirma a sacerdotisa.
Apesar do número de terreiros que tiveram que interromper suas atividades por ordem do tráfico em Duque de Caxias, a Delegacia de Crimes Raciais e Delitos de Intolerância (Decradi) tem apenas um registro da Baixada, de um terreiro invadido em Nova Iguaçu, em março deste ano. O titular da especializada, Gilbert Stivanello, explica que as vítimas têm medo de registrar ocorrência:
— Em Caxias, as informações são limitadas por essa questão do receio das pessoas em comparecer à delegacia. Muitos moram e têm parentes no local, e temem que, mesmo sendo presos esses traficantes, outros assumam seus lugares. Temos que buscar informação de outras fontes para viabilizarmos ações a tomar. Isso gera dificuldade investigativa, sim.
Para os babalorixás Fábio de Logun Edé e Leandro de Odé, do terreiro Egbé Odé Wofofun (Comunidade do Caçador que Veste Branco), no Jardim Nova Era, faltam apoio a essas vítimas.
— A maioria dos babalorixás mora na casa de axé. Eles registram ocorrência e acabou. Não têm auxílio, uma moradia provisória, uma lei que proteja qualquer segmento religioso — ressalta Pai Leandro.
Pai Fábio destaca ainda a carência na região, que já configura, segundo ele, abandono das pessoas que vivem no local:
— Faltam saneamento básico e até pavimentação em muitas áreas onde estão as casas de axé. Na Rua Alaíde Marinho, onde eu moro, não tem asfalto. Pior é quando expulsam um babalorixá ou uma ialorixá e quebram seus igbás (objetos que representam os orixás), que é uma coisa que cuidamos com tanto amor e zelo.
A crítica à ação dos criminosos partiu também de evangélicos. O presidente da Confederação de Conselhos de Pastores do Brasil (Confepab), Bispo Rodovalho, da comunidade evangélica Sara Nossa Terra, ressaltou a importância do respeito entre as diferentes religiões:
— A intolerância a qualquer tipo de culto e fé é inaceitável, principalmente em uma democracia.
Em Nova Iguaçu, representantes das secretarias municipais de Educação, de Assistência Social e da Cultura vão participar de uma audiência pública, nesta quinta-feira, na sede do Ministério Público Federal de São João de Meriti, às 10h, para debater propostas de ações contra a intolerância religiosa e ouvir as demandas de líderes de matrizes africanas. A intenção é definir um plano de ação com medidas como a conscientização nas escolas.
No dia 14 de julho, será realizada a 1ª Caminhada Inter-Religiosa da Baixada Fluminense. O ato será na Praça dos Direitos Humanos,no Centro de Nova Iguaçu. A concentração será às 9h e a caminhada começa às 11h pela Via Light.
Carta de um sacerdote da Baixada Fluminense
“… Por volta das 17h bateram no portão, três indivíduos armados com armas fogo pequenas. Eles aparentavam ter entre 15 e 17 anos e falaram com tom de ameaça: “Ninguém quer mais macumba aqui! Tem uma semana pra acabar com isso tudo!” e saíram efetuando disparos para o alto. Os rituais foram interrompidos, a festa aconteceu na casa de uma amiga que, gentilmente, nos ofereceu sua casa que fica em local seguro.
Após a festa, regressei a minha casa, que, além de templo religioso, é minha residência e da minha mãe… Tenho evitado sair à rua, pois, por duas vezes, fui abordado por eles, que circulam livremente, fortemente armados, e me perguntam: “Já acabou com a macumba?”. Além disso, o bairro está com barreiras nas esquinas, impedindo passagem de veículos. A cada dia expandem o raio demarcado…
Suspendi também todos os atendimentos, atividades e consultas. Orientei aos membros da casa que não venham presencialmente na casa, mantendo contato apenas virtual e telefônico.
Na casa funciona também uma oficina de costura que produz roupas usadas na religião de matriz africana. Desde então, não posso atender os clientes, interrompendo as vendas e encomendas. Essa atividade é principal fonte de renda, que provem o sustento da minha família e da minha casa.
Moro ali desde que nasci. Meus avós maternos deram início à construção do terreiro nos anos de 1970… Somos três gerações nos dedicando à construção dessa casa. É tudo o que temos e não temos pra onde ir.
Outras duas casas no bairro sofreram abordagens semelhantes.”
FONTE: Jornal O Globo em 30/05/2019