Animais em risco de extinção atacam lavouras e rebanhos; ONGs buscam pagar prejuízos e mediar conflitos
Por Elida Oliveira, G1
É o paradoxo da preservação: o aumento da população de animais ameaçados afeta a rotina de comunidades locais que vivem ao redor de áreas de proteção ambiental. No Raso da Catarina, no sertão da Bahia, a população de arara-azul-de-lear, ave em risco de extinção, passou de 60 para 1,7 mil em quatro décadas. Com mais animais procurando comida e a seca afetando a produção do licuri, alimento das aves, as araras estão buscando outra fonte de nutrientes: os milharais. Os ataques levam ao conflito com os agricultores.
No Boqueirão da Onça, área de preservação da onça-pintada e onça-parda, a criação de rebanhos soltos na caatinga faz com que a população culpe os felinos quando os animais não voltam, atribuindo o sumiço à ação do animal. Para combater os ataques e preservar o rebanho, alguns moradores estão caçando onças.
O G1 esteve na região para conhecer os projetos de preservação e educação ambiental desenvolvidos por instituições, que buscam reverter o quadro. As ameaças à conservação das espécies e o desafio de preservá-las são foco do especial “Desafio Natureza“, que já falou sobre a arara-azul-de-lear, ‘redescoberta’ há 40 anos, e sobre a onça-pintada, o maior felino das Américas que está criticamente ameaçado na caatinga.
Com as araras, uma ONG busca devolver a agricultores as sacas de milhos perdidas. Outra atua em duas frentes: quer preservar os licuris cercando-os para que o rebanho não coma os brotos, e aumentar o elo da população com a ave por meio do artesanato, ligando a renda da comunidade à preservação das araras.
No Boqueirão da Onça, a luta é pela mudança da cultura de criação de rebanhos soltos, aliando maior controle sanitário e de qualidade à produção.
Arara-de-lear: de ameaça à ‘praga’
Na zona rural das cidades de Jeremoabo e de Santa Brígida, no sertão da Bahia, os esforços de preservação da arara-azul-de-lear precisam transpor um desafio a mais frente à população: a ave é sinônimo de destruição de milharais.
“A gente vive um paradoxo mundial: um animal altamente ameaçado de extinção e que, localmente, é uma praga”, diz Kilma Manso, presidente da ONG Eco.
Com o aumento da população de araras, resultado direto da preservação, há maior busca por alimentos. No entanto, a região está enfrentando seca nos últimos anos.
A chuva, que já é escassa e só cai em três meses ao ano, está ainda mais rara. Com isso, as palmeiras que produzem o coquinho licuri, alimento preferido das araras-de-lear, não dão muitos cachos. As aves, então, se voltam aos milharais – em cerca de dois dias, uma centena de araras é capaz de destruir uma plantação de até 13 mil metros quadrados.
O agricultor fica sem o milho, que serviria de alimento para ele, para o rebanho e as galinhas. A alternativa que encontram é complementar o alimento dos animais com – veja só – as folhas da palmeira do licuri. Com menos folhas, a palmeira produz menos frutos. É o ciclo da escassez.
O agricultor Arnaldo Lima de Jesus, da comunidade quilombola da Baixa dos Quelés, já teve a lavoura destruída pelas araras.
“Estamos encostados no Raso da Catarina [área de preservação das araras]. Mas como a família dela era mais pouca, e por motivo das trovoada ser mais, tinha mais licuri, essas coisas. Aí de cinco anos para cá, parece que a família aumentou, chega na roça está tudo azulzinho. Se ela não terminar num dia, no outro já não tem mais. É cerca de um dia, dois dias, já vai embora tudo”, diz.
O projeto da ONG Eco tenta minimizar as perdas repondo os milhos perdidos em sacas, não em dinheiro. Kilma Manso percorre as comunidades medindo as áreas plantadas para ressarcir os agricultores. A iniciativa ocorre desde 2004 e conta com financiamento de instituições internacionais.
“A ideia é devolver tudo aquilo que a arara destruiu. O agricultor é completamente ressarcido. No geral, eles ficam satisfeitos porque quando veem a lavoura ser atacada, têm a certeza de que vão receber de volta o que elas destruíram”, fala Kilma Manso, presidente da ONG Eco.
Jardins de licuris e artesanato
Enquanto o prejuízo é coberto de um lado, de outro, o projeto Jardins da Arara-de-Lear foca na preservação do licuri e na ligação dos moradores com a arara por meio do artesanato.
A ideia é incentivar que os agricultores cerquem os 20% de reserva ambiental que são obrigados a manter em suas propriedades. Assim, o rebanho não come os brotos da palmeira.
Outra iniciativa do Jardins Arara-de-lear é promover a educação ambiental pelo artesanato.
“Há produtos feitos com as casquinhas de licuri [que as araras deixam após comer o fruto do coquinho], madeiras esculpidas para valorizar a relação com a arara e bolsas feitas da palha do licuri – retirada de modo que cause o menor impacto possível depois que eles aprendem o manejo da palmeira”, explica.
Ameaça ao rebanho
O Boqueirão da Onça é formado por desfiladeiros, montanhas e cavernas em meio à vegetação resistente. Uma grande área com enormes vazios demográficos, caatinga preservada e nascentes de rios: ambiente perfeito para a onça-pintada fazer da região sua morada.
Mas, em meio ao oásis para as onças, estão comunidades tradicionais, algumas remanescentes de quilombos. Uma das principais atividades da população é a criação de rebanhos de ovinos, caprinos e bovinos, que ficam soltos para que busquem alimento na caatinga, especialmente durante a seca.
A consequência é que muitos destes animais podem se perder, serem atacados por cobras ou furtados. “Mas, por causa da fama que os predadores naturalmente têm, a culpa de todas as perdas sempre sobra para as onças”, explica a bióloga Claudia Bueno de Campos, bióloga e coordenadora do Programa Amigos da Onça, do Instituto para a Conservação dos Carnívoros Neotropicais – Pró-Carnívoros, que trabalha na região há 12 anos.
O resultado é que a onça passou a ser alvo de caça.
Um projeto da Pró-Carnívoros tenta estimular a população a fazer a criação semi-intensiva, com áreas delimitadas para o rebanho.
Mas o desafio é longo. A cultura da caça atinge até os mais jovens, que vêem na morte do animal um ato de bravura.
FONTE: G1 em 23/02/2019