UM TERRITÓRIO: Notas sobre o Sul da Bahia
Por José Maurício Arruti e Carla Siqueira Campos
A região de Camamu
O Baixo Sul da Bahia é uma região formada por diversas comunidades negras rurais e caiçaras que mantém diversos laços entre si, de parentesco, de colaboração e aliança, religiosos, culturais e produtivos. Dentre esses laços, porém, os de parentesco ainda são os mais importantes na construção de um sentimento de identidade comum, capaz de superar os obstáculos das distâncias e das diferenças políticas, trabalhando para a preservação e renovação de uma memória coletiva comum.
Camamu, Marau, Igrapiúna e Ituberá compõem a chamada Baía de Camamu, localizada na microrregião de Valença. Nesta região é comum localizar – mos comunidades com nomes indígenas e africanos que reforçam e documentam as fontes históricas e narrativas locais que falam da presença de grupos indígenas e de negros fugidos por toda a região. De fato, as comunidades locais afirmam terem origem ainda no período da escravidão e descenderem de alguns destes grupos, tanto negros quanto indígenas. Sr. Domingos, liderança da associação comunitária de Garcia e do Sindicato de Trabalhadores de Camamu conta que as festas religiosas contribuíram por muito tempo para a manutenção do vínculo entre as comunidades, mas o desinteresse dos jovens por tais festas comunitárias, preferindo os bailes no centro da cidade, tem reduzido a intensidade destes laços.
Comunidades certificadas pela FCP no município de Camamu e data da publicação
Acarai – 5/03/2008
Barroso – 05/03/2008
Garcia – 05/03/2008
Pedra Rasa – 05/03/2008
Porto do Campo – 05/03/2008
Pratigi – 05/03/2008
Ronco – 05/03/2008
Tapuia – 05/03/2008
Jetimana- 13/03/2008
Pimenteira – 10/04/2008
Desde 2005 essas comunidades, dos municípios de Valença, Cairu, Taperoá, Nilo Peçanha, Ituberá, Igrapiúna, Camamu e Marau vêm sendo certificadas como comunidades quilombolas pela Fundação Cultural Palmares (FCP): quatro em 2005, nove em 2006, quatro em 2007 e, até o momento, 15 em 2008. Destas últimas 15, dez estão localizadas no município de Camamu.
Isso poderia apontar para a região do Baixo Sul da Bahia e, especialmente para Camamu, como um novo e importante foco de mobilização das comunidades quilombolas, mas não é bem assim. Na verdade, as certificações vêm sendo expedidas pela FCP por solicitação das municipalidades, sem que as próprias comunidades e suas associações representativas estejam sendo devidamente consultadas e informadas sobre o processo. Além disso, a inclusão destas comunidades no livro da FCP não tem garantido o pleno acesso às políticas públicas ou ao processo de regularização fundiária.
Menos de 10% das comunidades certificadas no estado tiveram abertos processos de regularização no Incra e nenhuma delas na região. Apesar de não existirem ainda conflitos flagrantes ou violentos, toda a região é foco de especulação imobiliária, promovida pela expansão do turismo, que ameaça se estender sobre as terras destas comunidades. Algumas dessas praias, como a própria Itacaré e Morro de São Paulo, são destinos famosos de um turismo elitizado, que contam com aeroportos e diversos hotéis luxuosos.
A comunidade de Garcia
Em Camamu duas comunidades se destacam pela organização política: Porto do Campo e Garcia. Ambas mantém laços de parentesco entre si e possuem associações de moradores antigas para o contexto regional. Com um histórico de importantes conquistas de serviços públicos, fruto de sua mobilização comunitária possuem plena inserção em espaços de discussão política municipal e regional, como os conselhos, o sindicato e a colônia de pescadores. Porto do Campo, por localizar-se em uma ilha, tem na pesca a sua atividade principal, estando mais presente na Colônia de Pescadores, enquanto Garcia, um pouco mais distante da praia, está mais presente no Sindicato de Trabalhadores Rurais, chegando mesmo a ocupar cargos de direção.
A comunidade do Garcia tem uma origem que remete há mais de cem anos, quando da chegada das suas primeiras famílias, de Zacaria e “Mané Bitu”. Sua primeira experiência de organização foi o Grupo da Igreja Católica, criado no início da década de 1980 por incentivo de um padre, com o objetivo inicial de construir uma igreja. No período de construção da igreja foi formado um grupo de mutirão, que se manteve ativo ainda depois da igreja finalizada. desempenhando um papel semelhante ao de uma associação de moradores. Nessa época exista também o grupo de futebol, uma das principais atividades de lazer da região, onde é conhecido como “baba”. O “Baba Organizado” do Garcia, com times masculino e feminino, também teve seu período de destaque na organização do grupo, hoje de importância decrescente. Atualmente a principal organização social e política da comunidade é a Associação Comunitária do Garcia e Área Circunvizinha, criada em março de 1995, envolvendo também as comunidades de Enseada, Coqueiro, Maria Rita e Cunduru. Tal abrangência vem se reduzindo nos últimos anos, porém, à medida em os povoados da “área circunvizinha” vão organizando suas próprias associações e se constituindo em comunidades com representação própria.
Como é uma das maiores comunidades do município, localizada próxima a cidade, com uma forte mobilização política da sua associação, Garcia tem conseguido algum sucesso na luta contra o preconceito e no acesso às políticas públicas federais e estaduais que chegam ao município. Isso está longe, porém, de significar pleno atendimento das necessidades básicas, muito menos qualidade neste atendimento. Conseguiram água encanada em 2003 por meio de um projeto do Banco Mundial, e a energia elétrica em 2004, por meio do Programa Federal Luz Para Todos. Mas uma das maiores lutas e orgulho da associação estão no campo da educação.
Não há nenhum berçário, maternal ou creche pública na comunidade, o que exclui do ensino infantil as crianças de 0 a 3 anos e impede que as mulheres busquem suas próprias fontes de renda. Mas a comunidade possui duas unidades escolares do ensino fundamental, para crianças, jovens e adultos (EJA). Uma destas escolas foi construída pela própria associação de moradores, com capacidade para atender 150 alunos, ao longo de quatro anos. Depois de construído, em 2001, o prédio foi entregue ao município, que assumiu a instalação da escola e a responsabilidade por sua manutenção. O segundo ciclo do ensino fundamental e o segundo grau têm de ser buscados na cidade, para o que a municipalidade mantém um transporte escolar. Mas as questões em torno da manutenção do prédio da escola na comunidade têm gerado sérias tensões entre a associação de moradores e a prefeitura, que condiciona a aplicação de verbas federais voltadas especificamente para a manutenção da escola à doação do prédio à municipalidade.
O processo de reconhecimento
Desde a primeira vez que o Sr. Domingos ouviu falar dos direitos de remanescentes de quilombos, pela televisão, ele percebeu que a comunidade poderia ter o mesmo tipo de reconhecimento, tanto quanto as vizinhas: “eu imaginei aqui, Garcia, Porto do Campo, imaginei Pedra Rasa. Pelo que se falou [na televisão] deu pra deduzir essas três junto. Enseada…”. Apesar disso e de toda a organização da comunidade em torno da associação, a certificação da comunidade como remanescente de quilombos pela FCP não se deu por iniciativa própria.
Foi apenas muito mais tarde – através de uma pessoa identificada como técnica da Fundação Odebrecht (que mantém inúmeras atividades na região) -, no ano de 2005, que a comunidade voltou a ouvir falar no assunto, mas que isso implicava em um processo de discussão ou formação em torno do tema:
“Ela só foi aquela reunião, não foi mais lá. […] Aí daquela ali já vem outro, já dizendo que nós já era quilombola. Como é que pode? Ela veio aqui uma vez e depois disseram que a gente era. [Disseram que] … precisava fazer uma Associação exclusivamente para isso. […] e político no meio, vereador, prefeito […] Isso, dentro de 15 dias, se teve umas 4 ou 5 reunião, com os estatuto pronto pra formar a Associação dos Quilombola, que só faltava pegar as pessoas para assinar, RG e CPF.”
Assim, no afogadilho, foi constituída uma nova associação, gerando indignação dos mais envolvidos com a luta da associação de moradores, criada, normatizada e gerida por eles há mais de dez anos. Isso resultou em uma série de discussões, que culminaram na decisão da comunidade pela extinção da Associação Quilombola do Garcia. Apesar de saberem que o processo de constituição ou reformulação de sua associação seria necessário para torná-la capaz de atender às novas formas do Estado derivadas do seu reconhecimento como quilombolas, esta recusa não corresponde a uma recusa da identificação como quilombola, mas a uma recusa de se submeter a um processo político arbitrário e espúrio, vindo de fora e de cima, sem respeito à história de organização daquele grupo. Uma recusa em abrir mão da sua autonomia que, ao final, é justamente um dos aspectos que sustentam a identidade do grupo. Uma recusa na decisão da comunidade pela extinção da Associação Quilombola do Garcia. Apesar de saberem que o processo de constituição ou reformulação de sua associação seria necessário para torná-la capaz de atender às novas formas do Estado derivadas do seu reconhecimento como quilombolas, esta recusa não corresponde a uma recusa da identificação como quilombola, mas a uma recusa de se submeter a um processo político arbitrário e espúrio, vindo de fora e de cima, sem respeito à história de organização daquele grupo. Uma recusa em abrir mão da sua autonomia que, ao final, é justamente um dos aspectos que sustentam a identidade do grupo. Uma recusa em transigir com interesses que lhes parece suspeitos, da municipalidade e de algumas organizações que trabalham na região, atualmente empenhadas não em ajudar a organizar comunidades quilombolas, mas em produzi-las em massa, sem que eles saibam exatamente para o quê.
FONTE: Boletim Territórios Negros, v .8, n. 34, maio/ jun. 2008