UM TERRITÓRIO: São Miguel dos Pretos/RS
Na região central do Rio Grande do Sul, a 10km da sede do município de Restinga Seca, localiza-se a comunidade de São Miguel dos Pretos. Constituída de noventa e cinco famílias distribuídas em 83 casas, a comunidade soma aproximadamente quatrocentos e setenta pessoas. Apesar de dispor de menos de 50 hectares, a atividade principal dos seus moradores é a agricultura de subsistência, complementada pelo trabalho como diaristas nas grandes e médias lavouras vizinhas.
As terras de São Miguel dos Pretos surgiram como uma brecha entre duas grandes sesmarias que pertenciam a duas grandes famílias rivais da região, os Santos Martins e os Bernardes Carvalho. Conhecida em fins do século XIX como Picada do Pau, essas terras eram o único local em que os negros podiam viver em liberdade, uma vez que, mesmo após a abolição formal da escravatura, foram mantidos na mais absoluta miséria e submetidos a várias formas de trabalho escravo.
A memória da comunidade de S. Miguel dos Pretos tem como seu marco de origem a revolta e fuga de “vovô Geraldo”, como é lembrado de abuso por parte dos Martins, “vovô Geraldo” rebelou-se e, sozinho, acuou seus patrões na casa grande, ameaçando degolá-los com o seu instrumento de trabalho, o enorme facão que carregava. Porém ele decidiu deixá-los vivos, a pedido dos outros escravos, mas partiu para procurar abrigo entre os Carvalho, que os compraram dos Martins, apesar da resistência desses últimos, que pediam uma alta soma pelo seu “mulato”. Como contam seus descendentes:
“Era muito dinheiro [32 onças]! Mas o falecido vovô dizia, ‘eu não quero servir vocês Martins, eu não quero servir mais de jeito nenhum, senão eu vou ter que fazer uma desordem e matar esses filhos da… passar a faca na garganta deles’. ‘Pois é Geraldo, mas nós não te entregamos de graça, também, tu é um mulato de muito valor’. Aí fizeram negócio. O Carvalho torceu o cinto cheio de onças […]
Para “vovô Geraldo” a troca de patrões significava a própria liberdade – “Graças a Deus, estou liberado, estou com os Carvalho, estou bem”, ele teria dito. Como novo capataz da fazenda dos Carvalho, dos quais adotou o nome, Geraldo passou a ter uma função remunerada, o que lhe permitiu comprar as terras dos Martins, que estavam em crise, conquistando assim certa autonomia. Seus descendentes conseguiram legitimar suas posses em 1892, após sua morte. Mas parte da propriedade foi vendida para dois irmãos alemães e estes começaram a avançar com suas cercas, grilando as terras de São Miguel dos Pretos.
Em 1999, os descendentes de Geraldo Carvalho criaram a “Associação Comunitária Vovô Geraldo”, que tem como um dos seus objetivos prioritários o reconhecimento, demarcação e titularização das terras de São Miguel como de remanescentes de quilombos. Recentemente deu-se um passo importante nessa direção: foi encaminhado à Secretaria do Trabalho do Rio Grande do Sul um laudo antropológico e os pretos de São Miguel esperam os resultados do processo.
FONTE: Boletim Territórios Negros, v. 2, n. 2. 2002