UM POUCO DE HISTÓRIA: Lanceiros Negros e os Farrapos de uma guerra
Com a deposição de D. Pedro I, em 1831, os ideais liberais ganharam muita força em todo Brasil. No Rio Grande do Sul, essa corrente assumiu uma postura separatista que deu origem ao que se convencionou chamar Guerra dos Farrapos (1835- 1845). Apesar de haver vasta literatura concedendo ao movimento republicano farroupilha caráter revolucionário, há muitas outras referências que apontam o contrário.
Muitos são os motivos que nos levam a crer que esse movimento consistiu basicamente em uma revolta por parte das elites sulinas que não queriam mais se submeter ao centralismo político do Império, que impunha altos impostos aos produtores sem que isso se revertesse em investimentos na região. No dia 20 de setembro de 1835, os estancieiros depuseram o presidente nomeado pelo governo central e proclamaram a República Rio-Grandense.
Diante da carência de combatentes para fazer frente às tropas imperiais, o movimento farroupilha se viu obrigado a libertar escravos para que estes pudessem ser incorporados aos regimentos rebeldes. Houve inclusive muitos casos em que senhores e seus filhos se livravam do alistamento entregando um cativo para ir em seu lugar. Além disso, os ex-escravos supriram a necessidade da formação de uma infantaria de lanceiros, corpo utilizado com sucesso pelos imperiais, já que o homem livre sulino se recusava a lutar a pé. Estima- se que em 1839, os lanceiros negros representavam um quinto das tropas farroupilhas. E assim o gesto nem um pouco desinteressado de libertação dos negros contribuiu para a imagem que até hoje se faz da Guerra como sendo libertária.
Porém, os farroupilhas jamais pretenderam o fim do regime escravocrata, uma vez que a organização social do Rio Grande do Sul, terra dos grandes fazendeiros e produtores de charque, dependia em grande parte do trabalho escravo. Portanto, apesar de estarem lutando do mesmo lado, os negros não estavam defendendo seus próprios interesses, eles simplesmente estavam seguindo seus senhores nos combates assim como o faziam no trabalho cotidiano.
O próprio Bento Gonçalves, grande chefe e herói das novelas sobre o movimento farroupilha, ao morrer em 1847, deixou como herança meia centena de homens escravizados, junto com terras, bois e cavalos.
A configuração das tropas sulinas também comprova a manutenção do caráter excludente da proclamada revolta. Os oficiais eram sempre brancos, e os negros marchavam, comiam e dormiam separados do resto dos homens livres combatentes. Para melhor ainda ilustrar, há um decreto farroupilha no qual se pode ler que “cidadãos e súditos da República, com exceção dos escravos, serão obrigados a trazer em seus chapéus o laço da Nação”. Fica patente assim que os negros não eram considerados dignos de usarem as cores da República que eles se empenhavam em defender.
No entanto, a batalha no serro de Porongos, travada em 14 de novembro de 1844, é o evento que deve causar maior constrangimento aos que têm uma visão romantizada da guerra. O barão de Caxias, então comandante das tropas imperiais, conseguiu um acordo com o general farroupilha David Canabarro que, ao saber da iminência de um ataque imperial mortal, ordenou que seus soldados se desfizessem das armas, alegando que não estavam funcionando bem. Assim, Canabarro covardemente aceitou entregar seus homens, desarmados, para que fossem massacrados.
Uma carta editada pelo Arquivo Histórico do Rio Grande do Sul, na qual Caxias dava suas instruções para o fulminante ataque, atesta a ocorrência da traição e revela o caráter racista de tal investida. Nela, o comandante tranquilizava seu coronel garantindo que não temesse o confronto, já que o exército inimigo, composto sobretudo por ex-escravos, estaria totalmente indefeso. E completava dizendo fria e hipocritamente: “No conflito, poupe o sangue brasileiro quando puder, particularmente de gente branca da província ou índios, pois sabe que esta pobre gente ainda nos pode ser útil no futuro.”
Não resta dúvida, portanto, de que o massacre era destinado aos negros, crioulos ou africanos e, como ficavam em acampamentos separados dos brancos, a missão tornou-se ainda mais fácil. O ataque aos 1.200 rebeldes resultou na captura de 280 infantes negros e na morte de 100 lanceiros.
No ano seguinte, em 1 o março, deu-se a rendição farroupilha. Entre outros pontos, o acordo determinava a liberdade dos soldados negros. Contudo, é inevitável pensar que essa concessão somente se tornou possível após o massacre da infantaria negra em Porongos .
Para saber mais: Texto Farroupilha: Movimento das elites pastoris sulinas , de Mário Maestri. Texto História do Brasil – Guerra dos Farrapos ( http:// www.brasilescola.com/historiab/guerra-farrapos.php)
FONTE: Boletim Territórios Negros, v. 5, n. 17/18, jan./abr. 2005