UM POUCO DE HISTÓRIA: Da “Missa do Morro” à “Missa dos Quilombos
Em dezembro de 1965, os jornais de Salvador anunciavam com escândalo a realização de uma missa na Basílica de S. Bento que se utilizaria, na sua parte musical, de temas e instrumentos “populares”: atabaques e berimbaus. Foi então batizada como “Missa do Morro”, em uma clara referência a experiências africanas análogas. O debate, que a partir de então dominou a imprensa, era travado entre os que defendiam essa “aculturação” da liturgia católica e os que atacavam a “violação do culto católico”, de um “povo civilizado” com elementos pagãos ou de uma “religiosidade selvagem”, que faziam a propaganda do candomblé em lugar de combatê-lo.
Mas, apesar das resistências locais, esse movimento de popularização da liturgia era uma tendência forte na conjuntura criada pelas reformas progressistas promovidas pelo Concílio Vaticano II (1965-1966). No Brasil, essa tendência desembocou na criação da Comissão Nacional de Liturgia da CNBB, especificamente voltada para as questões relativas à Reforma Litúrgica , sob a idéia chave da “aculturação” (isto é, a “tradução” da liturgia para o vocabulário cultural expressivo dos vários povos). Assim, a controvérsia em torno da Missa do Morro era a manifestação local de uma nova relação da Igreja com a “cultura”, no caso “brasileira” e “popular”. Era justamente por essa via do “popular” que alguns traços das religiões afro-brasileiras seriam evocados.
Por isso, quando aconteceram as primeiras reuniões da CNBB para a Linha da Ação Missionária, entre 1978 e 1980, o tema “ser negro na Igreja Católica do Brasil” predominou. Assim como no ano seguinte, em setembro de 1981, no III Encontro da Linha da Ação Missionária da CNBB, a atenção voltou-se firmemente para a “possibilidade da liturgia católica integrar elementos da cultura africana”.
Essa tendência, somada à abertura proposta pela Teologia da Libertação, nesses mesmos anos, leva a Reforma Litúrgica a dar passagem a um movimento que busca construir uma identidade política para o negro no interior da reflexão teológica católica a partir de uma cultura religiosa de origem africana. O candomblé progressivamente deixa de ser visto, então, como um conjunto de traços e símbolos, donde se faziam empréstimos fragmentários, para passar a ser visto como um todo, inteiro e afirmativo, da “negritude”.
Como um outro desdobramento dessa revisão sobre a relação histórica e teológica da Igreja com o negro, em 1981, na data da morte de Zumbi dos Palmares, foi celebrada no Recife a primeira missa no Brasil e, possivelmente em todo o mundo católico, em que altos representantes da Igreja, diante de uma multidão de cerca de 8 mil pessoas, se penitenciaram e pediram perdão pelo posicionamento histórico da Igreja diante dos negros, da África e, em especial, dos negros aquilombados, reconhecidos como os maiores inimigos da empresa cristã durante séculos. A “Missa dos Quilombos” propôs uma reapropriação simbólica das lutas e da vida do negro contemporâneo, de forma a tomá-las como matéria de reflexão dos agentes eclesiais engajados socialmente, até então resistentes à questão racial. O tema dos quilombos saía da história para retornar à vida política, por meio da reflexão teológica.
Para saber mais, leia
O artigo de Pierre Sanchis na revista Religião e Sociedade (v. 20, nº 2, ano 1999) com o título “Inculturação? Da cultura à identidade, um itinerário político no campo religioso: o caso dos agentes pastorais negros”.
O artigo de Eduardo Hoonaert na revista Tempo e Presença n. 173, jan./fev. de 1982) com o título “A missa dos Quilombos chegou tarde demais”.
E ouça o disco de Milton Nascimento, Pedro Casaldáglia e Pedro Tierra intitulado Missa dos Quilombos (São Paulo: Polygram).
FONTE: Boletim Territórios Negros, v. 2, n. 1. 2002