UM TERRITÓRIO: Cangume
“Cangume” é o nome de um bairro rural do município de Itaoca, Vale do Ribeira, quase na fronteira do estado de São Paulo com o Paraná. Hoje, a comunidade que deu origem ao bairro e mantém o seu nome é formada por 33 famílias negras, que somam cerca de 150 moradores permanentes. Descendem de três troncos principais: os Monteiro, os Gonçalves e os Maciel de Pontes, que se misturaram em uma intrincada rede de parentesco por meio do constante casamento entre primos. Todos, sem exceção, são kardecistas e freqüentam, de uma a quatro vezes por semana, o Centro Espírita Fé em Deus, fundado pela comunidade ainda na década de 1930. O centro tem um longo histórico de serviços de cura prestados a pessoas dos municípios do entorno e é uma referência para os bairros vizinhos.
Vivem sobre uma terra comum, o “patrimônio do Cangume”, de apenas 37 ha, onde mantêm minúsculas hortas cercadas e alguma criação solta, de porcos e cabras. Em função das pouquíssimas terras, os moradores do Cangume trabalham como diaristas para os fazendeiros vizinhos, recebendo remuneração que chega a ser até 50% menor que a dos trabalhadores dos outros bairros. Manifestação mais concreta da discriminação que recai sobre o grupo, apesar do destaque que ele vem alcançando com o reconhecimento, pelos poderes municipais, de sua condição de remanescentes de quilombos.
Até a década de 1960, o Cangume tinha o dobro do tamanho atual, com cerca de 70 famílias e pouco mais de 1.300 ha. Eram lavradores principalmente de milho, feijão, arroz e mandioca, possuindo pequenas criações de porcos, cabras e galinhas. Produziam artesanato de cipó, palha, barro e praticamente tudo de que necessitavam, recorrendo ao parco mercado regional para pouquíssimos gêneros, como o sal. O gado e o dinheiro eram praticamente inexistentes no bairro.
O avanço econômico sobre o Vale do Ribeira, iniciado na década de 1940 com base na extração de minério, levou à abertura de estradas e, conseqüentemente, a uma rápida valorização das terras da região. Os primeiros fazendeiros de gado chegam ao bairro em meados da década de 1950, começando a alterar o padrão local de pequenos apossamentos familiares. Na década seguinte, uma grande Ação Discriminatória levou à regularização fundiária de vários municípios, inclusive Apiahi, a que Itaoca ainda era subordinado, atingindo o Cangume.
Assim, em 1968, as posses dos moradores do Cangume, que eram trabalhadas de forma coletiva, com base na solidariedade entre famílias extensas que se revezavam sobre terras de uso comum, foram fragmentadas em cerca de 80 glebas individuais. Esse fato, reproduzido por toda a região, deu origem a um feroz mercado de terras, do qual a população local, alheia à lógica de mercado e, em especial, à do mercado de terras, não tinha condições de avaliar as implicações. De forma apenas aparentemente paradoxal, a regularização das terras do Cangume foi o maior instrumento de sua expropriação territorial. Em um curtíssimo período de anos, todas as glebas individuais, por necessidade ou por pressão dos próprios fazendeiros já instalados, que buscavam ampliar seus pastos, foram vendidas para criadores de gado que chegavam de Minas Gerais e do Paraná. Restou apenas a gleba que, por decisão dos próprios moradores, havia sido titulada (ainda que não registrada em cartório) como “em comum”, o atual “patrimônio”.
A perda de todas as terras em um período tão curto de anos levou a uma forte migração do Cangume. Muitas famílias se deslocaram para o município de Tatuí, periferia de Sorocaba, em busca do trabalho nas plantações de tomate.
FONTE: Boletim Territórios Negros (v.3, n.2. 2003)