UM POUCO DE HISTÓRIA: Cabula, culto afrobrasileiro do Sapê do Norte/ES
Em 1963 a revista da Comissão Espírito-Santense de Folclore comemorava o centenário do primeiro bispo do Espírito Santo, Dom João Batista Correa Nery, que foi também o primeiro a descrever a cerimônia da “Cabula”, culto praticado por negros no interior do estado. As anotações do bispo, realizadas em 1901, sobre aquela “misteriosa” cerimônia foram citadas, posteriormente, por importantes pesquisadores como Nina Rodrigues e Artur Ramos.
O bispo João Nery se refere à “Cabula” como uma cerimônia que era praticada exclusivamente por negros, mas que após a abolição, em 13 de maio de 1888, passou a ser praticada por brancos e negros, chegando a ter “mais de oito mil pessoas iniciadas”. A “Cabula” foi definida por ele como um culto africano baseado no segredo absoluto imposto aos seus membros, com rituais de iniciação, palavras sagradas, gestos e recursos particulares que possibilitassem o reconhecimento entre os adeptos.
Suas sessões eram realizadas em casa ou, mais comumente, nas florestas à noite. Essas sessões têm o nome de “mesa” e se dividiam em “Mesa de Santa Bárbara”, “Mesa de Santa Maria” e “Mesa de São Cosme e São Damião”. O objetivo principal dos membros da “Cabula” seria, segundo o bispo, receber a direção de “Tatá”, um espírito bom com poder de guiar e proteger seus fiéis em todas as suas necessidades. Nessas anotações, o bispo registrou uma grande quantidade de termos utilizados pelos “cabulistas” durante as cerimônias: camanás (irmãos), caialos (profanos), Tatá (espírito familiar), mesa (reunião), camucite (lugar de reunião), curimá (brincar), candaru (fogo), enba (pó sagrado), etc.
O bispo encontrou a prática da “Cabula” em “três freguesias” do Espírito Santo, mas não citou quais. Em 1952, o folclorista Guilherme Santos Neves entrou em contato com Arnulfo Neves, uma das pessoas que acompanhou o bispo em suas incursões pelo interior do estado; ele revelou que as três freguesias que se encontram no relato do bispo são os atuais municípios de São Mateus, Conceição da Barra e Linhares – que na época pertenciam à freguesia de Santa Cruz. Ainda segundo Arnulfo Alves, era em São Mateus que a prática da Cabula se fazia mais intensa, irradiando para as outras duas “freguesias”.
Hoje a popularidade da Cabula é muito menor e a maioria das pessoas se recusa a declarar que participa ou mesmo que sabe o que vem a ser o culto. Isso porque o interesse do bispo ao descrever a Cabula não era nem folclórico, nem científico, mas foi a forma mais eficiente, segundo ele mesmo declarou, de conhecer o culto para destruí-lo. João Nery foi o agente da maior repressão religiosa vivida pelos negros do Norte do Espírito Santo, consolidando tardiamente a entrada da Igreja Católica por aqueles sertões.
Hoje, quando voltam a se organizar em torno da identidade quilombola, as populações negras de Conceição da Barra e São Matheus recuperam as reminiscências dessa repressão e, aos poucos, superam a censura imposta por cerca de cem anos ao culto. Hoje sabemos que o desaparecimento da Cabula foi apenas aparente e, ainda que se manifeste de forma bastante transformada com relação à descrição feita para o início do século, ela sobrevive em seu tradicional segredo, em vários dos povoados negros remanescentes da escravidão e das expulsões da Aracruz Celulose SA, que ocupou a maior parte de seu território com eucaliptais.
FONTE: Boletim Territórios Negros (v.3, n.4. 2003)