UM TERRITÓRIO: Sacopã
Desde a abertura dos primeiros procedimentos para reconhecimento de comunidades remanescentes de quilombos , a partir de 1988, data da publicação do artigo 68 da Constituição Federal, as comunidades abrangidas por esse dispositivo constitucional são fundamentalmente de origem rural. Dezesseis anos após sua publicação, o número de comunidades reconhecidas ou reivindicando o reconhecimento cresce cada vez mais no país, abrangendo comunidades cada vez mais diversificadas. No ano de 2003, a Família Silva se tornou a primeira comunidade do país que pode vir a ter suas terras oficialmente reconhecidas como quilombo urbano, através de um convênio firmado entre a Fundação Cultural Palmares (FCP) e a prefeitura gaúcha para a produção de um laudo antropológico.
No Estado do Rio de Janeiro, porém, a possibilidade de reconhecimento oficial de uma área urbana como remanescente de quilombo foi aberta em 1999, quando a Assessoria de Assuntos Étnicos do gabinete da vice-governadora do estado, na época, Benedita da Silva, encaminhou ao Ministério Público Federal (MPF) e à FCP um “relatório de inspeção técnica” solicitando um “levantamento histórico” referente às famílias habitantes da Ladeira do Sacopã, na zona sul da cidade do Rio de Janeiro. O MPF, em seguida, solicitou a FCP a “elaboração de um laudo antropológico de identificação que viabilize o reconhecimento da comunidade como quilombola”.
A Família Pinto, ocupando a área desde o final do século XIX, vem travando uma intensa batalha judicial para permanecer em suas terras. Moradores de um dos locais mais privilegiados da cidade do Rio de Janeiro, com vista panorâmica para o Morro do Corcovado e para a Lagoa Rodrigo de Freitas, localizados no bairro da Lagoa, as famílias começaram a ser pressionadas por grandes empresas imobiliárias desde a década de 70. Neste período, os moradores enfrentaram inclusive soldados armados que chegaram às suas casas para cumprir uma ordem de despejo.
Os atuais moradores do endereço nobre da Ladeira do Sacopã são descendentes de escravos vindos da região norte do estado, fugidos da escravidão. Os antigos contavam que um escravo, chamado Mariano Paletó, que tinha herdado de seus senhores as terras dessa fazenda, encaminhava sigilosamente escravos fugidos para essa região. Anos mais tarde, um dos filhos desse ancestral da Família Pinto começou a trabalhar como empregado da proprietária Astreia Bhering Oliveira Matos, que posteriormente lhe cedeu as terras. Mesmo após a morte dessa proprietária e a transformação daquelas terras em reserva florestal, a Família Pinto permaneceu no local, que foi progressivamente se transformando em um bairro de luxo cercado de mansões.
Os vinte mil metros quadrados ocupados, em 1999, por 42 pessoas há mais de cem anos, transformaram-se em um famoso pagode, conhecido como “Só na lenha”, frequentado por grandes nomes do samba carioca e por uma plateia de jovens universitários de classe média. Os membros dessa família, há cerca de vinte anos, criaram o Grupo de Pagode Sacopã , que chegou a reunir mais de duzentas pessoas em torno de uma feijoada. As atividades do grupo, porém, foram interrompidas pelo Condomínio do Edifício Cambury que alegava o horário impróprio para o funcionamento do pagode.
Ao contrário do que aconteceu na cidade de Porto Alegre, onde a prefeitura firmou um acordo com a FCP para reconhecer a comunidade como quilombo urbano e regularizar suas terras, no Rio de Janeiro a prefeitura vem pressionando a Família Pinto a deixar o local, emitindo ordens de despejo. Em março de 2002, o juiz deu ganho de causa às famílias, depois de 27 anos de batalha judicial, mas este ato ainda não representou uma vitória, já que a outra parte do processo pode recorrer. Também diferentemente do que aconteceu com a Família Silva, até o momento os descendentes de escravos da Ladeira do Sacopã não receberam nenhuma manifestação da FCP sobre o andamento de seu processo. Os membros da Família Pinto, moradores de uma área avaliada em mais de R$ 4 milhões, resistem há quase trinta anos à pressão de grandes empresas imobiliárias e esperam à legalização de suas terras e a autorização para voltar a realizar seus pagodes.
Referência
“Relatório de Inspeção Técnica” – Gabinete da Vice Governadoria do Estado do Rio de Janeiro, 1999 “A Conquista do Paraíso” – Revista Isto É, março de 1986.
FONTE: Boletim Territórios Negros (v.4, n.15. 2003)