Associação que defende o ateísmo é acusada de intolerância religiosa
Por Anna Virginia Balloussier
Cadê seu Deus agora?
Em lugar nenhum para os membros da Atea (Associação Brasileira de Ateus e Agnósticos) — a trabalheira é convencer os 98% da população que dizem acreditar no Criador, segundo pesquisa Datafolha, e assegurar “a laicidade do Estado”.
A associação teoricamente representa 1 de cada 10 brasileiros — somando ateus (1%), agnósticos e os sem religião (8%). Em nome dessas pessoas (evidentemente nem todas sentem-se representadas pela Atea), o grupo ajuizou dezenas de ações contra o que considera atentados ao princípio do Estado laico.
A maioria questiona iniciativas evangélicas respaldadas pelo poder público. Caso de uma ação contra o Rio e seu prefeito, Marcelo Crivella, “pela realização de eventos religiosos em escolas municipais” — o suposto uso já foi explicado pelo secretário de educação. Outra é contrária à instalação de um templo evangélico na sede do Bope (PM-RJ).
A investida judicial se estende a outros credos, como o católico (“doação de um terreno para imagens em Aparecida-SP”) e a umbanda (“construção de monumento a Iemanjá em Cidreira-RS”).
Mas a Atea não é apenas acusadora. Ela também está na incômoda posição de ré: é alvo do Ministério Público paulista, que já pediu a instauração de inquérito policial por postagens que poderiam incorrer na “prática de crime de ultraje a culto”.
“A gente quer odiar a religião, ela merece. Querem nos culpar por memes religiosos? Nos declaramos culpados desde já”, admite o presidente da Atea, Daniel Sottomaior, 46.
Dois posts provocaram ira ao pegar carona em momentos de comoção para questionar a fé. Ante a foto do menino sírio de rosto enterrado na areia após se afogar, a Atea fustigou: “Se Deus existisse, seria um canalha”. Após a tragédia aérea com a Chapecoense, nova provocação: uma foto do time rezando em campo, outra do avião destroçado, mais a legenda “pode confiar, amiguinho, Deus é fiel”.
A Atea se desculpou depois, “por não ter mostrado mais claramente como a religião se aproveita de momentos de dor como este para impedir o pensamento racional”.
À reportagem Sottomaior lança uma metáfora para explicar sua birra com a “ficção divina”. “Digamos que um dia alguém evoque o Supremo Enxugador de Gelo. O movimento dá crias, começam as desavenças, o enriquecimento com enxugamento de gelo alheio, ‘quem não enxugar gelo é mau’… No fim, enxugar gelo não vai ajudar ninguém.”
Pior que tamanha “negação do pensamento crítico” se entranha em totens da democracia, afirma ele. Vide a Constituição brasileira, promulgada “sob a proteção de Deus”, exemplifica.
Sottomaior acha que pregar ódio contra religiões não é sinônimo de intolerância (“ideias não têm direitos, pessoas sim”). E critica o “preconceito” contra descrentes.
Um caso clássico entre políticos seria o de FHC — uma das razões atribuídas à sua derrota na eleição para prefeito de SP em 1985 foi a de titubear quando lhe perguntaram num debate se acreditava em Deus. “Depois, todo mundo aprendeu a lição”, diz Sottomaior.
O Datafolha detectou que um candidato ateu ao Planalto seria rejeitado por 52% da população — 16% e 24% não elegeriam um católico e um evangélico, respectivamente.
Para o deputado Hidekazu Takayama (PSC-PR), líder da bancada evangélica na Câmara, a Atea peca num ponto: “O Estado é laico, mas os ateus têm que entender que o povo é 85% cristão.”
“Quem combate manifestações religiosas não contribui para uma democracia madura”, diz dom Sergio da Rocha, presidente da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil.
Para Sottomaior, haverá sempre uma boia de salvação na América Latina: o Uruguai, onde 4 a cada 10 habitantes dizem não ter religião e prédios públicos não exibem imagens religiosas.
FONTE: Gazeta do Povo em 04/01/2018