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Alcântara, uma luta nacional: ainda é possível defender o fracasso

A atual proposta do governo Temer em ceder a Base espacial de Alcântara (ou Centro de Lançamento de Alcântara – CLA) aos Estados Unidos ou a qualquer país interessado, traz um velho debate envolvendo o já reconhecido território quilombola de Alcântara e os interesses do programa aeroespacial brasileiro.

Razão pela qual, os militares e gestores do programa aeroespacial, vez ou outra, atribuem os fracassos deste programa aos quilombolas de Alcântara, ou mesmo, a organizações de apoio a luta destes. Não é verdade. Esta é uma afirmação mentirosa que na realidade camufla as verdadeiras razões dos insucessos presenciados no programa aeroespacial.

Com a finalidade de colaborar no debate, trago à baila alguns elementos da trajetória de luta destas comunidades em face do processo de implantação do CLA, para contribuir com debate, e trago também algumas descontinuidades implicadas ao programa aeroespacial.

Nos parece, que o programa aeroespacial brasileiro padece de um pecado original que está relacionado a má gestão, a violações de direitos e ao reduzido investimento orçamentário.

Sua trajetória marcada está por desvios de finalidade o que  o fez sucumbir ao interesse comercial (proposta de aluguel da Base espacial) e o afastou de sua finalidade inicial – o desenvolvimento da política espacial nacional.

O CLA é inspiração militar, concebido no auge da ditadura na década de 1980. Para sua instalação deslocou-se compulsoriamente 23 povoados, num total de 312 famílias quilombolas do litoral alcantarense para a região central do município. O argumento principal para retirada das famílias do litoral foi o da segurança durante as operações de lançamento de foguetes.

Este argumento perdeu total sentido quando foi construída a vila dos militares exatamente onde estavam localizados alguns dos povoados remanejados (praticamente, na beira da praia). Quer dizer, a situação oferece riscos aos civis, aos militares residentes naquela vila, não.

Criado com a finalidade de lançar artefatos tecnológicos no espaço e servir ao desenvolvimento da política espacial nacional, em 1996 sobre a primeira baixa em razão do Convenio celebrado entre o então Ministério da Aeronáutica com a Empresa Brasileira de Administração Aeroportuária, a INFRAERO, em que esta assumiria por 15 anos a administração do CLA.

E ainda ficara responsável por coordenar e realizar a segunda fase de remanejamento de comunidades quilombolas do litoral alcantarense, o que não ocorreu devido a imediata mobilização das comunidades e posteriormente judicialização do conflito, decorrente de várias ações propostas pelo Ministério Público Federal contra a União, o que resultou no processo de regularização do território.

Registra-se ainda, o processo de implantação do CLA é profundamente caracterizado por violações de direitos humanos das famílias quilombolas de Alcântara. A grande maioria das famílias realocadas nunca receberam quaisquer tipos de indenizações e/ou reparações.

Muitas das pessoas, aliás, morreram sem gozar qualquer tipo de reparação pelos danos sofridos. Decorrente disso, além das ações em tramite nos tribunais nacionais, duas ações tramitam contra o Estado brasileiro em Cortes internacionais: uma na Comissão Interamericana de Direitos Humanos, da Organização dos Estados Americanos; outra na Organização Internacional do Trabalho.

Aquela, em função das violações perpetradas pelo Estado brasileiro no processo de implantação do CLA. Esta, em consequência da proposta de expansão da Base Espacial, fruto do falido Acordo de Cooperação Tecnológica com a Ucrânia para execução do Projeto Cyclone 4, em razão do descumprimento da Convenção 169 sobre Povos Indígenas e Tribais, especialmente, no que pertine ao direito consulta.

O referido acordo significou um verdadeiro fracasso de gestão, mas, sobretudo de concepção. É sintomático do que há de pior na gestão da política espacial.  

Dados fornecidos pelo ex-ministro da Ciência e Tecnologia e ex-diretor da Alcântara Cyclone Space, Roberto Amaral, um dos defensores desse programa, revela que até fevereiro de 2011 foram gastos pelo governo brasileiro o aporte de 218 milhões de reais.

No entanto, determinado por crises políticas e econômicas na Ucrânia essa parceria não decolou, a Ucrânia não arcou com suas responsabilidades e o governo brasileiro, em julho de 2015 denunciou o  Tratado com a Ucrânia (Decreto 8.494 de 24 de julho de 2017).

Mas, as obras do Complexo Terrestre da Alcantara Cyclone Space – ACS (Empresa Binacional constituída entre Ucrânia e Brasil para administrar o Projeto Cyclone 4) que já estavam em avançado estágio de construção foram abandonas e assim permanecem até hoje no interior do CLA – um verdadeiro elefante branco. Eis aqui, uma ilustração prática de um prejuízo concreto ao erário público, exemplo maior má gestão dos militares, e dos gestores dessa famigerada política. Um ateste de que essa concepção de cessão e acordos bilaterais com outros países, não funciona.

Somado a isso, merece relevo denunciarmos o fato de em 37 anos, mesmo após a nova ordem constitucional de 1988, o CLA funcionar escalabrosamente sem licença ambiental. Inexistem Estudos de Impacto Ambiental e seu respectivo Relatório.

Neste aspecto, há de convirmos que o CLA sequer deveria estar funcionando. É preciso que este debate venha à baila como forma de se assegurar as condições mínimas para um debate justo, inclusive, em torno dos impactos gerados pelo CLA no ambiente local.

Sem isso, o debate permanece no obscurantismo da ditadura militar. Como também para determinar a feitura de possíveis acordos bilaterais.

O principal projeto do programa aeroespacial é o VLS. As três tentativas de lançamento restaram inexitosas. A última, em 2003, é a conhecida tragédia de Alcântara que vitimou 21 cientistas da cúpula deste programa, significando uma perda intelectual sem precedentes para a tecnologia aeroespacial brasileira, para a soberania tecnológica nacional. Desde então, o referido programa que vinha engatinhando sofreu sucessivos cortes orçamentários beirando ao abandono funcional.  

Voltemos a questão da cessão da Base aos Estado Unidos. Ora, essa proposta não é nova. A primeira vez que veio à tona, no final da década de 1990, começo dos anos 2000, o Acordo de Salvaguarda Tecnológica foi rejeitado pela sociedade brasileira por ocasião do plebiscito da Alca, resultando no seu arquivamento no Congresso Nacional, mormente, pelo fato de ferir a soberania nacional em diversas clausulas.

No nosso entender, a agora reavivada proposta de cessão do CLA aos Estados Unidos ou a qualquer outro é na verdade um atestado do fracasso do programa aeroespacial brasileiro que por diversas razões (orçamentarias e gerenciais) não foi capaz de se desenvolver e, encontra como solução, equivocada, ceder/alugar o território considerado estratégico para a defesa nacional.

Ao pretender entregar a Base Espacial de Alcântara, o governo Temer, sobretudo, os militares renunciam a defesa nacional, renunciam a soberania nacional, renunciam a soberania tecnológica do pais.

É preciso que a comunidade cientifica brasileira construa uma unidade de enfrentamento a essa renúncia do patrimônio científico para mobilizar todos os setores da sociedade em torno desse debate. No nosso ver, essa proposta deve ser inviabilizada. É necessário o crivo da ampla participação popular e discussão da comunidade científica brasileira.

Não custa lembrar que a SBPC, por ocasião do Acordo de Salvaguarda Tecnológica com os EUA em 2002, se posicionou expressamente contrária aos termos do referido acordo emitindo, inclusive, um parecer contrário, o que foi determinante para o seu arquivamento.

Mas, em 2002 não estávamos sob um Estado de exceção, tal qual estamos agora. Se tinha acesso as minutas e aos termos do tal acordo. Agora não. Ninguém  tem acesso formalmente a nenhum documento referida as tais tratativas com os Estados Unidos (nem os quilombolas, nem a sociedade brasileira).

O que se sabe é o que é veiculado nas mídias e nos grandes jornais de circulação.

Este é um ponto que precisa ser denunciado em todos os espaços possíveis. Os quilombolas, a sociedade brasileira precisa ter acesso às tratativas, se é que elas existem.

Mesmo que a trajetória do programa aeroespacial esteja profundamente marcado por fracassos, como estamos tentando demonstrar, é preciso que defendamos e esse fracasso e que ele permaneça integralmente conosco. É melhor tê-lo conosco para tentar fortifica-lo, que entrega-lo aos EUA para o que matem.  

Pois bem, a omissão do governo brasileiro em fornecer documentos e acesso formal as negociações que dizem estar em curso com os EUA é dolosa, é de má-fé e atenta profundamente contra a soberania popular, nacional e tecnológica brasileiro. Atenta contra o Estado brasileiro e meaça, como nunca antes visto na história recente da democracia, a permanência das comunidades quilombolas de Alcântara no seu território.   

Diferente do que pregam os militares e os defensores do programa aeroespacial, nós quilombolas de Alcântara, não somos contra a Base espacial.

O que não se admite é que sejamos novamente violados na nossa condição étnica e humana em detrimento de um projeto que já se revelou falido, incompetente e que se sustenta a revelias dos direitos culturais, sociais, territoriais e econômicos da população quilombola de Alcântara.

Desejamos sim, que o CLA e a política espacial brasileira tenham êxitos, pois entendemos a importância  tecnológica e para a defesa da soberania nacional dessa política. O que não se admite é que isso se desenvolva retirando direitos, reduzindo o território quilombola de Alcântara. Isso jamais. Permaneceremos no nosso território, na sua integridade e plenitude.

Se se acredita não ser mais capaz de gerenciar por conta própria  a política espacial brasileira, é preciso que coloque em discussão e reflexão, com a comunidade científica nacional, o próprio sentido de se manter  em funcionamento o CLA. Seguramente, entregá-lo ao interesse estrangeiro não é, nem de longe, a solução. Não é uma proposta inteligente!

Cremos que é possível ao Estado brasileiro potencializar a atual estrutura do CLA e o fazer decolar. E claro, cumprindo o Acordo celebrado na Justiça Federal em 2008 (com sentença transitada em julgada), em que a União se compromete a não realizar a expansão do CLA sob o território das comunidades.

Paralelo a isso é preciso a imediata titulação do território quilombola de Alcântara nos termos do Relatório Técnico de Identificação e Delimitação (RTID) publicado em novembro de 2008. Não podem os quilombolas permanecer na insegurança jurídica em função de um projeto comprovamente falido, em termos de concepção.

Paradoxalmente, nos parece que o problema maior do programa aeroespacial é a falência de novas concepções tecnológicas para trilhar novos rumos com vistas ao fortalecimento de tecnologias nacionais.

E aí, a aparente saída mais fácil é a cessão para outros países, abdicando do investimento próprio?

É contradição visceral que confronta o argumento de defesa da soberania nacional. Com a devida vênia, repetimos, não é uma solução inteligente. Enfraquece  mais ainda a tecnologia nacional, e só atende a interesses comerciais.

Reunidas nos dias 24 e 25 de novembro, no II Seminário Alcãntara: a Base Espacial e os Impasses Sociais ocorrido na cidade de Alcãntara, os quilombolas e entidades pareiras publicaram uma Carta, problematizando algumas das questões debatidas aqui e reafirmando seu compromisso irrenunciável de lutar pelo seu território e, defender, se preciso for, a soberania nacional.

Por fim, acreditamos que a defesa do território quilombola de Alcântara na sua inteireza e plenitude e a defesa da defesa da soberania nacional é o grande ponto de conexão entre os quilombolas e a sociedade brasileira para a defesa de Alcântara, transformando-a numa unidade de resistência a esse governo golpista, tal qual foi em 2002, por ocasião do plebiscito da Alca. Que assim seja!

Danilo Serejo Lopes é quilombola de Alcântara/MA, bacharel em Direito pela UFG, Mestre em Ciência Politica (Programa de Pós-graduação em Cartografia Social e Política da Amazônia) pela UEMA/UFMG.

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