Índios, quilombolas e trabalhadores são os que mais perderam direitos
“Continuamos no mesmo barco, mas agora estamos à deriva, sem remo”, diz o presidente da Associação Quilombola de Mangueiras, Maurício Moreira dos Santos. Localizado na região nordeste de Belo Horizonte, o quilombo de Mangueiras teve seu território reconhecido no último ano de governo da ex-presidente Dilma Rousseff (PT), em janeiro de 2016. O reconhecimento é o passo anterior à titulação, que garante a posse permanente da terra. O processo que “caminhava muito lentamente”, como Maurício observa, parou. “Não existe comunidade quilombola sem sua terra”, destaca.
O governo de Michel Temer, em abril, mandou suspender os processos administrativos para emissão de decreto presidencial autorizando a desapropriação de imóveis rurais situados nos territórios quilombolas reconhecidos pelo Incra até a decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) dos procedimentos para identificação e titulação das terras quilombolas, previstos no Decreto 4.887, de 2003. A constitucionalidade da norma foi questionada pelo então Partido da Frente Liberal (PFL), atual Democratas (DEM), por inexistência de lei que lhe confira validade, já que a Constituição não pode ser regulamentada por decreto. A conclusão do julgamento, marcado para ontem, foi adiado novamente porque o ministro Dias Tofolli, que estava com voto de vista da ação, não compareceu ao plenário por problemas de saúde. Não há prazo para que o julgamento seja retomado.
Desde a Carta Magna de 1988, que determinou “aos remanescentes das comunidades dos quilombos que estejam ocupando suas terras é reconhecida a propriedade definitiva, devendo o Estado emitir-lhes os títulos respectivos”, o Decreto 4.887 foi a conquista legal mais importante dos quilombolas. Não tramita no Congresso Nacional nenhum projeto que o substituiria nem que dê mais garantias aos direitos desses povos. O caminho do Legislativo tem sido no sentido contrário. “O Legislativo, nos últimos anos, tem instigado a violação dos direitos quilombolas”, afirma Givânia Maria da Silva, da Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (Conaq). “O governo de Michel Temer talvez seja das tragédias e ataques mais violentos aos negros depois da escravidão”, constata.
A reportagem fez um levantamento em todas as propostas de autoria do Executivo – medidas provisórias, projetos de lei, emendas constitucionais e decretos – desde que Temer assumiu o governo interinamente, em 12 de maio de 2016, e concluiu que as principais conquistas alcançadas pelos descendentes de escravos, indígenas, LGBTs, trabalhadores e pelos cidadãos brasileiros – em relação à saúde, educação, previdência e trabalho – após a Constituição de 1988 estão ameaçadas em prol de interesses dos empresários, do agronegócio e de crenças religiosas.
Direitos Constitucionais ameaçados
Vinte e nove anos depois de a Constituição de 1988 garantir o direito dos quilombolas à propriedade de seus territórios, o governo federal titulou somente 38 terras. Em 2016, apenas Tabacaria (AL) foi titulada e, em 2017, apenas as quatro terras com decretos de desapropriação expedidos no governo Dilma receberam os títulos até o momento. “A nossa terra é o lugar onde vivemos em paz, onde nossos ancestrais, nossos netos e bisnetos nasceram”, diz o quilombola Eduardo Santos. Ele está tentando resgatar a origem rural de Mangueiras, localizada às margens da Rodovia MG-20 e cercada pela mata do Isidoro. Lalado, como é conhecido, iniciou uma pequena criação de porco e galinha e cultivo de cana. Ele está cultivando também algumas hortaliças.
A paralisação dos processos de titulação das terras quilombolas é um dos reflexos dos cortes que o governo Temer fez no orçamento do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), que já vinha sofrendo quedas nos governos anteriores. O total de 220 terras quilombolas homologadas hoje no Brasil foi garantido em grande parte pelos governos estaduais. De acordo com a Comissão Pró-Indígena de São Paulo, em sete anos o orçamento do órgão apresentou uma queda de 94%. O valor gasto com reconhecimento e indenização de terras quilombolas, por exemplo, caiu drasticamente, de R$ 43,95 milhões em 2014 para R$ 1,073 milhão até setembro de 2017. Os dados são do Portal da Transparência do governo federal. Em 2015, foram gastos R$ 15,019 milhões e em 2016, R$ 20,4 milhões. Givânia afirma que o retrocesso das políticas públicas aumentou a violência contra as comunidades. Em 2017, 14 quilombolas foram assassinados, segundo informações do Conaq. De acordo com dados do Departamento de Ouvidoria Nacional dos Direitos Humanos, em 2016 foram oito mortes e em 2015 e 2011 duas mortes foram registradas.
Atualmente, o Incra, que é o órgão responsável pela política fundiária, incluindo as comunidades quilombolas, está vinculado à Casa Civil, comandada por Eliseu Padilha. O ministro já deu sinais de que está do lado dos ruralistas. Quando ainda era deputado federal, cargo que ocupou de 1995 a 2014, Padilha defendeu a PEC 215, uma das propostas que mais assombram as comunidades quilombolas e os povos indígenas. A medida propõe que o Congresso Nacional passe a aprovar e ratificar a demarcação de terras indígenas e quilombolas, hoje prerrogativas da União. “Mais que uma derrota do governo, como apresentada por parte da mídia, a aprovação esmagadora da Proposta de Emenda à Constituição 215/2000 (PEC215), na Comissão de Constituição e Justiça da Câmara dos Deputados, aponta para a perspectiva de que o país possa recuperar a soberania plena sobre a ordenação física do território nacional, atualmente, compartilhada com o movimento ambientalista-indigenista internacional”, afirmou Padilha em publicação no seu site, no dia 31 de março de 2012, com o nome “PEC 215 sinaliza resgate da soberania nacional”.
Índios x Temer
Assim como o Incra, a Fundação Nacional do Índio (Funai) vem sofrendo um processo de desmonte desde o governo da ex-presidente Dilma Rousseff (PT), intensificado no governo do presidente Michel Temer com a redução de cargos e do orçamento. De acordo com informações do Portal da Transparência do governo federal, no ano passado foram gastos R$17,802 milhões com a demarcação e fiscalização de terras indígenas e proteção dos povos indígenas isolados. Até setembro deste ano, apenas R$ 5,014 milhões foram investidos nessa ação, uma queda superior a 200%. Desde que Michel Temer assumiu a Presidência, nenhuma terra indígena foi demarcada. O desempenho do peemedebista é considerado “o pior para os direitos dos indígenas desde a redemocratização”. De acordo com levantamento da organização não governamental Instituto Socioambiental (ISA), Dilma Rousseff homologou 21 áreas, Lula, 87, FHC, 145, Itamar Franco, 16, Fernando Collor, 112 e José Sarney, 67. Futuras demarcações estão ameaçadas, colocando em xeque as conquistas constitucionais desses povos: “São reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens”, diz a Constituição de 1988.
Em julho, Michel Temer assinou parecer da Advocacia-Geral da União (AGU) determinando que só poderão ser demarcadas áreas ocupadas pelo índios até a data da promulgação da Constituição Federal e que áreas já demarcadas não poderão ser ampliadas. O documento, costurado com a Frente Parlamentar da Agropecuária (FPA), foi publicado duas semanas antes de a Câmara barrar a investigação de corrupção contra o presidente. Dos 263 votos favoráveis que ele conseguiu na votação, 130 vieram da bancada ruralista. Em reação à medida, o Ministério Público Federal publicou uma nota em que diz: “O Parecer 001/2017/GAB/CGU/AGU, aprovado pelo presidente Michel Temer, que pretende ter força vinculante, põe no papel o que o atual governo faz e os que antecederam já faziam: não demarcar, não reconhecer e não proteger”. E acrescentou: “O parecer tem apenas um grande mérito: traz as digitais do presidente da República e, portanto, faz dele o responsável direto da política indigenista da sua administração”. A Advocacia-Geral da União respondeu que o parecer “de forma alguma representa retrocesso na demarcação de terras indígenas. Ao contrário, vai promover segurança jurídica a esta importante política pública”.
As políticas indigenistas estão nas mãos do general Franklimberg Ribeiro de Freitas, indicado pelo PSC para presidir a Funai. A Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) recebeu a nomeação como uma tentativa de militarização do órgão, “como nos tempos da ditadura”. “No governo Dilma, a gente tinha muitas ameaças de retrocessos e a gente na linha de frente fazendo pressão, evitando a aprovação dessa pauta anti-indígena. Mas agora tudo deixou de ser uma ameaça e virou uma realidade. Nós temos casos concretos de retrocessos que fazem com que a gente afirme que é o pior momento da história desde a redemocratização. De ataque aos direitos, de incitação ao ódio, ao racismo, preconceito, de conflitos fundiários”, afirmou a líder indígena Sônia Guajajara, em conversa na Casa Pública com o tema “índios x Temer”.
Os pataxós da Aldeia Velha, localizada em Porto Seguro, estão sofrendo com a precariedade na saúde. Membro do conselho local de saúde indígena, Tucurumã Pataxó, afirmou que a aldeia, que tinha três carros para atender às demandas da saúde, hoje tem apenas um. Eles já ficaram, no entanto, sem nenhum. Tucurumã disse ainda que o conselho local de saúde está parado. “Já tem mais de um ano que não tem reunião do conselho. Nós não estamos tendo recurso para fazer a reunião e eles não estão cumprindo com nossas necessidades”, acrescentou. Os conselhos locais de saúde tem a função de manifestar-se sobre as ações e os serviços de atenção à saúde indígena necessários às respectivas comunidades, avaliar a execução das ações de atenção à saúde indígena nas comunidades e encaminhar propostas aos Conselhos Distritais de Saúde Indígena. No ano passado, o ministro da Saúde, Ricardo Barros, publicou duas portarias, revogadas após pressão das tribos, que acabavam com a autonomia financeira e orçamentária da Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai), responsável por coordenar os conselhos locais, e dos 34 Distritos Sanitários Especiais Indígenas (DSEIs) na gestão de recursos. “No ano passado, eu estive em Brasília e vi o preconceito que eles têm. O ministro da Saúde foi à nossa aldeia, a gente tratou ele muito bem. O cacique deu até um cocar, prestigiando ele. A gente não dá um cocar para qualquer pessoa. Demos um cocar para ele e quando chegamos em Brasília fomos maltratados, ele não queria atender a gente, só atendeu embaixo de pressão”, contou Tucurumã
Meio ambiente
Paralelamente ao desmonte das conquistas constitucionais dos índios e quilombolas, estão os ataques ao meio ambiente, com a extinção de áreas protegidas, o enfraquecimento do licenciamento ambiental, tentativas de desregulamentação e liberação de agrotóxicos ainda mais agressivos à saúde da população e ao meio ambiente, venda de terras para estrangeiros, anistia a crimes ambientais e a dívidas do agronegócio, legalização da grilagem de terras e a liberação de áreas de floresta para a exploração mineral. Retrocessos que, mais uma vez, colocam Michel Temer no período anterior a 1988 – nesse caso, na avaliação dos ambientalistas.
“Desde a redemocratização do país, nunca um governo promoveu tantos retrocessos e de forma tão acelerada para a agenda ambiental, fundiária e de direitos como o de Temer. De maneira autoritária, por meio de medidas provisórias, decretos e outros atos desprovidos de debates com a população, os avanços socioambientais conquistados pelo Brasil nas últimas décadas – incluindo os garantidos pela Constituição – vêm sendo sumariamente desmantelados”, publicou o movimento #Resista, articulado pelo ISA, e que já conta com o apoio de mais de 300 organizações, movimentos e redes ambientalistas, indígenas, indigenistas, do campo e de defesa dos direitos humanos. De acordo com a Constituição brasileira, “a Floresta Amazônica brasileira, a Mata Atlântica, a Serra do Mar, o Pantanal Mato-Grossense e a Zona Costeira são patrimônio nacional, e sua utilização far-se-á, na forma da lei, dentro de condições que assegurem a preservação do meio ambiente, inclusive quanto ao uso dos recursos naturais”.
A última grande cartada contra o meio ambiente, no jogo de vai e vem de Temer com suas propostas, foi a publicação do Decreto 9.147, que extingue a Reserva Nacional do Cobre e Associados (Renca), na Floresta Amazônica. A medida permitia a exploração irrestrita do garimpo na floresta e, segundo ambientalistas e indígenas, colocaria em risco reservas ambientais e terras indígenas. A norma foi revogada pelo presidente depois de muita pressão social, que contou com a participação da modelo Gisele Bundchen. A suspensão do decreto, no entanto, não significa necessariamente que a ameaça acabou. Também com a ajuda da pressão da top model, o presidente vetou a medida provisória que reduziria a Floresta Nacional do Jamanxin, no Pará, mas depois apresentou um projeto de lei com o mesmo teor.
O movimento #Resista apontou nove medidas que avançam no país e ameaçam o meio ambiente, as comunidades quilombolas e os índios: o enfraquecimento do licenciamento ambiental (PL 3.729/2004 – Lei Geral de Licenciamento); a anulação dos direitos indígenas e de seus territórios (PEC 215/2000 – acaba com demarcação de Terras Indígenas (TIs) e PEC 132/2015 – indenização a ocupantes de TIs); a venda de terras para estrangeiros (PL 2289/2007 – PL 4059/2012); a redução das áreas protegidas e Unidades de Conservação (UCs) (MP 756/2016 e MP 758/2016 – Redução de UCs da Amazônia no Pará); a liberação de agrotóxicos (PL 6299/2002 – PL do Veneno e PL 34/2015 – Rotulagem de Transgênicos); a facilitação da grilagem de terras, ocupação de terras públicas de alto valor ambiental e fim do conceito de função social da terra (MP 759/2016); o ataque a direitos trabalhistas de trabalhadores do campo (PL 6422/2016 – Regula normas do trabalho rural, PEC 287/2016 – Reforma previdenciária e PLS 432/2013 – Altera o conceito de trabalho escravo); o ataque a direitos de populações ribeirinhas e quilombolas (MP 759/2016 e PL 3.729/2004); a flexibilização das regras de mineração (PL 37/2011 – Código de Mineração).
As nove medidas são pautas, principalmente, das bancadas ruralista e dos empresários. Eles apoiaram o impeachment da presidente Dilma Rousseff e, logo quando Temer assumiu o governo, levaram suas reivindicações ao presidente. Pelo monitoramento da Confederação Nacional da Indústria (CNI), das 36 propostas apresentadas, 29 avançaram. Já os ruralistas reivindicaram 19 medidas (13 foram atendidas). De acordo com levantamento feito pelo jornal Folha de S.Paulo, publicado em setembro, a agenda de Temer mostra que, em 16 meses de mandato, ele se encontrou com representantes de 42 empresas, cinco vezes com a bancada ruralista e sete com entidades e líderes evangélicos. Na outra ponta, ele teve seis reuniões com centrais sindicais e nenhuma com movimentos quilombolas ou indígenas.
Trabalhadores
A última demanda dos ruralistas acatada por Michel Temer, às vésperas da votação da denúncia contra ele, foi a mudança no conceito de trabalho escravo. Na última segunda-feira, o Ministério do Trabalho, comandado por Ronaldo Nogueira (PTB-RS), publicou uma portaria, de número 1.129/2017, que retira as condições degradantes e a jornada exaustiva de trabalho como situações que configuram situação análoga à escravidão. Com a nova regra, o trabalho escravo é definido pelos seguintes pontos: submissão sob ameaça de punição; restrição de transporte para reter trabalhador no local de trabalho; uso de segurança armada para reter trabalhador; retenção da documentação pessoal. Além disso, a portaria determina que só o ministro pode incluir os empregadores na lista suja, tirando essa decisão das mãos dos técnicos da pasta. A lista divulgada pela ONG Repórter Brasil este ano traz 250 nomes flagrados por trabalho escravo contemporâneo entre dezembro de 2014 e dezembro de 2016. Entram nessa contagem os casos em que o poder público caracterizou trabalho análogo ao de escravo e nos quais os empregadores tiveram direito à defesa administrativa em primeira e segunda instâncias.
O Ministério Público Federal e o Ministério do Trabalho recomendaram ao governo a revogação da medida. O procurador-geral do Trabalho em exercício, Luiz Eduardo Guimarães Bojart, alertou que a portaria desconstrói a imagem de compromisso no combate ao trabalho escravo conquistada internacionalmente pelo Brasil nos últimos anos. “Ela reverte a expectativa para a construção de uma sociedade justa, digna e engajada com o trabalho decente. Vale reafirmar que o bom empresário não usa o trabalho escravo. A portaria atende apenas uma parcela pouco representativa do empresariado”, disse o procurador.
A Frente Parlamentar da Agropecuária (FPA), que reúne deputados e senadores ruralistas, afirmou, por meio de nota, que a norma vem ao “encontro de pautas das bancadas”. No entanto, a FPA negou que tenha interferido na publicação da portaria. Integrante do grupo do agronegócio, o ministro da Agricultura, Blairo Maggi, saiu em defesa da medida, que, de acordo com ele, irá organizar a falta de critérios nas fiscalizações.
Pautas prioritárias da agenda da CNI de 2017, a reforma trabalhista e a liberação da terceirização para todas as atividades das empresas também foram consideradas perdas de direitos dos trabalhadores por seus representantes. No início deste mês, as centrais sindicais denunciaram a reforma trabalhista e a terceirização na Comissão Interamericana de Direitos Humanos, da Organização dos Estados Americanos (OEA). “O objetivo das centrais é o de expor as ações praticadas pelo Governo brasileiro que, ao impor para a sociedade profundas mudanças sem o devido debate e aprovar leis que regridem séculos em termos de relações laborais e garantias de direitos humanos, sucumbiu as exigências mercadológicas de grupos financeiros em detrimento ao capital humano”, informa a União Geral dos Trabalhadores (UGT) por meio de nota. A Pública mostrou na reportagem “Parlamentares-patrões conduziram mudanças trabalhistas” que a maioria de parlamentares que aprovaram as leis são empresários e/ou representantes de entidades patronais.
Saúde
“O sistema de saúde pública não está recebendo o mesmo entusiasmo que recebia antes. A construção do SUS está ficando a desejar nesse período agora”, afirmou Ivo de Oliveira Lopes, diretor do Hospital Sofia Feldman. Referência nacional em parto humanizado, a maior maternidade do país está correndo o risco de fechar as portas por falta de recursos. O Sofia Feldman, localizado em Belo Horizonte, atende 100% pelo Sistema Único de Saúde (SUS). A receita conta com R$ 4,5 milhões mensais, e cerca de 80% são referentes a repasses da União e o restante vem do governo de Minas. Desde 2013, não há reajuste nos repasses do governo federal. “As perdas financeiras acarretam todas as outras perdas de direito à cidadania. Quando você nega o acesso, quando diz que não tem vaga, isso é um crime contra a cidadania e com a própria Constituição”, observou Ivo.
A falta de recursos reflete no dia a dia dos trabalhadores. A obstetra Krisley Castro Almeida contou que faltam insumos, principalmente na CTI neonatal. “A gente está em um momento político de muito retrocesso no nosso país, e o que estamos passando no Sofia, apesar da gente trazer aqui hoje um problema pontual, faz parte de um problema geral do Brasil, que é de tentativa de enfraquecer o poder e a capacidade do SUS de garantir acesso e recursos gratuitos”, diz a médica, que participou de manifestação para salvar o Sofia, no dia 10 de outubro, na praça da Liberdade, na capital mineira.
De acordo com o presidente do Conselho Nacional de Saúde, Ronald dos Santos, a promulgação da Emenda Constitucional 95/2016 foi o grande golpe deste governo no SUS. “Ela impede o SUS de enfrentar o seu principal desafio, que é o subfinanciamento”, destaca. A norma determina que, a partir de 2018, as despesas federais só poderão aumentar de acordo com a inflação acumulada conforme o Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA). Um estudo feito pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), órgão vinculado ao Ministério do Planejamento, mostrou que o SUS perderá até R$ 743 bilhões.
“Defender o SUS é defender a democracia. Defender a democracia é defender o SUS”, diz Ronald, parafraseando Sérgio Auroca, médico sanitarista que liderou a 8ª Conferência Nacional de Saúde, realizada em março de 1986 em Brasília. Durante o encontro, Auroca disse que “democracia é saúde”. A conferência representou um marco na história do SUS. O relatório final do encontro serviu de subsídio para os deputados constituintes elaborarem o artigo 196 da Constituição Federal, que estabelece: “A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação”.
Em vez de aumentar os recursos do SUS, a proposta apresentada pelo governo foi criar planos de saúde “acessíveis”. O ministro da saúde, Ricardo Barros, que recebeu doações eleitorais, em 2014, do presidente da administradora de planos de saúde Aliança, Elon Gomes de Almeida, instituiu em agosto do ano passado um grupo de trabalho para discutir essa proposta. O objetivo, de acordo com ele, seria aliviar os gastos do governo com o financiamento do SUS. Para o presidente do CNS, a real intenção é caminhar para a privatização da saúde no Brasil, desresponsabilizando o governo de garantir o direito à saúde. “A população brasileira já paga altíssimas cargas tributárias; além disso, saúde é um princípio constitucional, é dever do Estado”, criticou o presidente nacional da OAB, Claudio Lamachia, em audiência pública realizada pela entidade para discutir o tema.
Educação
A ameaça da privatização também ronda a educação brasileira. De acordo com a Consultoria de Orçamento e Fiscalização Financeira da Câmara dos Deputados, R$ 24 bilhões poderão deixar de ser investidos por ano na educação com a emenda constitucional que limitou os gastos públicos. O coordenador-geral da Campanha Nacional pelo Direito à Educação, Daniel Cara, avalia que, pela primeira vez desde a Constituição de 1988, o país está andando para trás. “Nunca alcançamos estratégias para garantir educação de qualidade para todos, mas estávamos avançando. Agora as demandas da educação estão estagnadas com a redução de investimentos, vai haver retrações”, prevê. Cara observa, no entanto, que o setor começou a sofrer com os cortes orçamentários desde a entrada de Joaquim Levy no Ministério da Fazenda, durante o governo Dilma.
As universidades federais já estão sofrendo na carne os cortes orçamentários. Em agosto, a Associação Nacional dos Dirigentes das Instituições Federais de Ensino Superior (Andifes) publicou uma nota para denunciar o desmonte das universidades brasileiras . “O orçamento de 2017 já representou corte significativo em relação ao de 2016 (6,74% nominal na matriz de custeio, 10% no programa de expansão Reuni, 40,1% em capital, 3,15% do Programa Nacional de Assistência Estudantil e mais 6,28% de inflação no período)”, diz o documento, que acrescenta: “Até o momento foram liberados apenas 75% do orçamento de custeio e 45% do orçamento de capital. Para manter o funcionamento mínimo das instituições é indispensável a liberação de 100% de ambos os limites, uma vez que já estamos absorvendo fortes perdas orçamentárias como indicado acima”. A conjuntura apresentada para 2018 também não é favorável.
Como se não bastasse cortar investimentos, o governo do presidente Michel Temer vetou o artigo da Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO) que incluía, dentre as prioridades para 2018, o cumprimento de metas previstas pelo Plano Nacional de Educação (PNE). A justificativa foi a de que a medida restringiria a liberdade do Executivo de alocar recursos para a implementação das políticas públicas e reduziria a flexibilidade na priorização das despesas discriminatórias em caso de necessidade de ajustes previstos na Lei de Responsabilidade Fiscal “colocando em risco a meta fiscal”. Um balanço do Observatório do PNE divulgado em junho mostrou que após três anos de vigência apenas 20% das metas e estratégias que deveriam ter sido cumpridas até 2017 foram alcançadas total ou parcialmente.
LGBTs
“Todos são iguais perante a Lei, sem distinção de qualquer natureza.” É o que determina a Constituição brasileira. No entanto, para os cidadãos LGBTs, esse direito está se distanciando cada vez mais da realidade. O governo do presidente Michel Temer reduziu para zero os repasses federais aos programas específicos de defesa da comunidade LGBT. A presidenta da Associação Brasileira de Gays, Lésbicas, Travestis e Transexuais, Symmy Larrat, observa que os investimentos já eram baixos. “Nós nos encontramos em uma situação muito frágil porque não existe legislação voltada para a gente, apenas portarias e decretos”, destacou.
Nem mesmo a Constituição de 1988 trouxe direitos direcionados aos LGBTs. Na época, houve uma resistência dos parlamentares em acatar as propostas do Movimento Homossexual Brasileiro (MHB). “Se alguém tem essa condição, se alguém é homossexual, que assuma sua condição de homossexual, mas não que a Constituição venha a dar garantia a esse tipo de comportamento que para mim é considerado um comportamento anormal”, afirmou o constituinte Salatiel Carvalho, que recebeu apoio dos colegas. “A fala do constituinte Salatiel Carvalho pode ser tida com um bom resumo da argumentação geral dos opositores conservadores de ontem e de hoje no tocante à proteção dos homossexuais de outrora e dos atuais LGBTs”, conclui o mestrando em ciências políticas Eduardo Martins de Azevedo Vilalon em artigo sobre o movimento homossexual brasileiro na Constituinte de 1987-1988.
Todas as mudanças nas leis trabalhistas, no debate sobre a educação e até mesmo na reforma política afetam os LGBTs, de acordo com Symmy. “Nós já temos mais dificuldade de conseguir emprego, sofremos assédio diariamente e o debate na educação, então!”, exclamou Symmy. Em setembro do ano passado, o Ministério da Educação retirou da Base Nacional Comum Curricular todas as menções às expressões “identidade de gênero” e “orientação sexual”. O documento servirá de referência sobre o que deve ser ensinado nas escolas públicas e privadas do país. A alteração no texto ameaça o debate sobre identidade de gênero e sexualidade nas instituições de ensino. O MEC justificou que a mudança foi feita para evitar a redundância e que a supressão não alterava os pressupostos da Base. O reflexo da falta de política pública, alinhada a pautas conservadoras, aparece nos dados de violência contra os gays, lésbicas, travestis e transexuais. De acordo com a ONG Grupo Gay da Bahia, até o dia 20 de setembro, 277 homicídios foram registrados neste ano. É a maior média de assassinatos desde que os dados passaram a ser contabilizados pela entidade baiana, em 1980.
O americano Shane Landry passeava abraçado com seu amigo no centro de Belo Horizonte quando foram abordados por três jovens que perguntaram: “Por que vocês estão felizes?”. Antes de eles entenderem o que estava acontecendo, os rapazes puxaram seu amigo pelo colarinho e começaram a bater neles. Shane caiu no chão, quebrou o braço. Seu amigo conseguiu levantar e parar um carro. No dia seguinte, os dois foram registrar o boletim de ocorrência, mas o policial disse que aquilo não ia dar em nada.
“Foi pior ser agredido por homofobia do que se fosse um assalto. A sensação de que você não pode fazer nada é o que me indigna. Isso porque sou branco, de classe média. Imagina o que acontece com a população mais pobre. Como vamos mudar isso se o sistema não funciona?”, questionou. Para Shane, o aumento da homofobia no Brasil tem a ver com a onda de conservadorismo. “Eu acho que as pessoas sempre foram muito preconceituosas, mas agora elas estão perdendo o medo de se manifestar. Antes, exigia um temor das consequências sociais, um constrangimento de ser julgado”, acrescentou. (Agência Pública)