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Pesquisas resgatam história genética de remanescentes de quilombos

A maior concentração de remanescentes de quilombos no Estado de São Paulo fica no Vale do Ribeira. São dezenas de comunidades que, estima-se, foram criadas na primeira metade do século 19.

Antigos quilombos são hoje bairros das cidades de Eldorado e Iporanga, cerca de 220 quilômetros a sudoeste da capital paulista. Nessas comunidades teve início em 2000 uma das mais aprofundadas pesquisas de genética de populações em desenvolvimento no Brasil.

“As comunidades que estudamos são verdadeiras relíquias do processo de miscigenação da população brasileira. Conseguimos resgatar a história genética de quatro a cinco gerações de membros daqueles remanescentes de quilombos”, disse a geneticista Lilian Kimura.

O trabalho resultou na publicação de artigos científicos, dos quais o mais recente trata da investigação genética do cromossomo Y, que define o sexo masculino nos seres humanos e que pode ser usado para retraçar a linhagem hereditária paterna dos quilombos.

O estudo, que tem Lilian como primeira autora, foi publicado no American Journal of Human Biology. A investigadora responsável é Regina Célia Mingroni-Netto, professora no Instituto de Biociências (IB) da USP e orientadora de Lilian no mestrado, doutorado e pós-doutorado, todos com bolsa da Fapesp.

Pesquisadores resgatam história genética de habitantes de remanescentes de quilombos. Análise de cromossomos mostrou que cerca de 65% tem origem europeia. No lado materno, a origem é principalmente africana – Reprodução

A investigação do cromossomo Y transmitido de pais para filhos foi feita em 289 homens das comunidades. Foram usadas 17 marcadores para identificar as origens do cromossomo Y de cada um dos indivíduos. Os pesquisadores identificaram 95 haplótipos, que são blocos de DNA transmitidos em conjunto para os descendentes. Os haplótipos foram reunidos em 15 grupos.

Descobriu-se que cerca de 65% dos cromossomos Y naquelas comunidades é de origem europeia, 32% são africanos e 6% de nativos americanos. Daí se depreende que a maioria dos homens descende de escravos homens que eram filhos de escravas com seus “donos” escravocratas.

Em outras palavras, dois terços da linha patrilinear quilombola é europeia. Tais resultados estão de acordo com o padrão observado em outras populações de afrodescendentes brasileiros e norte-americanos de origem escrava, nos quais a linhagem patrilinear europeia é predominante.

Inferir a origem do cromossomo Y nos antigos quilombos é apenas a ponta do iceberg da pesquisa, que tem revelado muito mais. Os resultados da análise do cromossomo Y diferem dos apresentados nos estudos sobre as linhagens maternas das comunidades quilombolas do Vale do Ribeira – que também serão publicados. A linha matrilinear é investigada por meio da análise do DNA mitocondrial, que é transmitido exclusivamente por mulheres para seus filhos e filhas.

“O DNA mitocondrial naquelas comunidades é preponderantemente africano, mas também com uma importante porcentagem de participação nativo-americana”, disse Regina. Praticamente não foi detectado DNA mitocondrial europeu. Entre as mães de escravos que originaram esses quilombos, nenhuma era branca.

“A genética, o estudo da genealogia e as entrevistas nos permitiram detectar cinco principais haplótipos fundadores masculinos, que explicam 27,7% das linhagens de cromossomos Y nas remanescentes de quilombos do Vale do Ribeira”, disse Lilian.

O estudo foi feito no âmbito do Centro de Pesquisa sobre o Genoma Humano e Células-Tronco, um Cepid financiado pela Fapesp.

Fundadores dos quilombos

Os cinco haplótipos principais pertencem aos homens fundadores dos quilombos e que deixaram descendência sobrevivente até os dias de hoje. Os eventuais haplótipos de outros fundadores que não deixaram descendentes, ou cujos descendentes morreram sem deixar filhos, foram perdidos.

Os principais fundadores dos quilombos eram cinco homens que viveram na primeira metade do século 19. Presume-se que eram escravos fugidos ou libertos que se fixaram na região acompanhados (ou não) por suas companheiras também escravas ou indígenas.

Com o tempo os quilombos cresceram e receberam novos indivíduos, fugidos ou libertos. Ocorreu também um pequeno grau de miscigenação com os índios que habitavam o Vale do Ribeira, daí a presença dos 6% de linhagem patrilinear nativo-americana.

O haplótipo H16A é o que aparece com maior frequência em duas comunidades. No bairro Galvão, o haplótipo ocorre em 61,9% das amostras de cromossomo Y. Já no bairro São Pedro, em 22,7%. Essa concentração está de acordo com o levantamento dos dados genealógicos e históricos, no registro de batismo nas igrejas ou no registro de propriedade de terra nos cartórios.

Ao aliar o dado genético ao registro histórico e aos relatos individuais, os pesquisadores puderam inferir que o haplótipo H16A corresponderia muito provavelmente ao cromossomo Y herdado de Bernardo Furquim.

Um trabalho sobre os bairros negros do Vale do Ribeira informa que Furquim era um escravo fugido. Seu verdadeiro nome era Bernardo Machado dos Santos e ele adotara o sobrenome Furquim para dificultar a sua localização.

O primeiro registro de terras em seu nome data de 1856. Os registros de batistério, em Eldorado, mostram

Bernardo batizando filhos com duas mulheres entre 1856 e 1871. Nesses documentos, ele aparece como “preto liberto” e as duas mulheres também figuram como “pretas libertas”.

“Bernardo Furquim é a figura mais emblemática das comunidades. A maior parte das populações dos bairros Galvão e São Pedro é formada por seus descendentes. Dizem que ele teve 24 filhos. Alguns relatos falam em mais de cem”, disse Lilian.

“Furquim ia estabelecendo famílias com mulheres diferentes e registrando terras em seu nome. Ele colocava cada esposa em uma casa diferente. Essas ruínas ainda existem”, disse.

Assim como ocorreu no caso de Furquim, a investigação genética correndo em paralelo com a pesquisa histórica apontou a identidade de outros quatro fundadores dos antigos quilombos, cada qual com uma frequência aumentada em bairros específicos.
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Pesquisadores resgatam história genética de habitantes de remanescentes de quilombos. Análise de cromossomos mostrou que cerca de 65% tem origem europeia. No lado materno, a origem é principalmente africana – Foto: Lilian Kimura

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“O objetivo inicial do trabalho, em 2000, era estudar a ancestralidade e a dinâmica de doenças genéticas nas populações quilombolas. Esperávamos encontrar naquelas comunidades isoladas uma frequência aumentada de condições genéticas, além de doenças raras causadas por mutações genéticas que só existissem ali”, disse Regina.

Entre 2000 e 2003, foram feitos os levantamentos genealógicos e as fichas clínicas de 1,5 mil pessoas. Entre 660 e 700 homens e mulheres foram selecionados para fazer parte do estudo genético, com coleta de amostras de sangue.

A análise genética dos moradores não revelou indícios da presença de qualquer anomalia genética desconhecida. “Por outro lado, detectou-se frequências aumentadas para doenças modernas como a obesidade e a hipertensão”, disse Regina.

Os moradores que tiveram detectadas essas doenças receberam aconselhamento de saúde. “Explicávamos aos moradores que eram hipertensos sem saber. Ou alertávamos mães para a anemia dos filhos”, disse.

O principal tipo de anemia nos remanescentes de quilombos é a falciforme, doença hereditária predominante em africanos, mas que pode se manifestar também em descendentes de europeus. Ela se caracteriza por uma alteração nos glóbulos vermelhos, que perdem a forma arredondada e elástica, adquirem o aspecto de uma foice (daí o nome falciforme) e endurecem, o que dificulta a passagem do sangue pelos vasos de pequeno calibre e a oxigenação dos tecidos.

A anemia falciforme é causada por mutação genética. Para ser portador da doença, é preciso que o gene alterado seja transmitido pelo pai e pela mãe. Se for transmitido apenas por um dos pais, o filho terá o traço falciforme, que poderá passar para seus descendentes, mas não a doença manifesta.

“Todas as pessoas que foram detectadas como carregando o traço falciforme ou a anemia falciforme receberam orientações médicas e genéticas da equipe”, disse Regina. Para desenvolver a doença é preciso ter herdado o gene da anemia falciforme de ambos os pais, ou seja, ser homozigoto.

Há os indivíduos heterozigotos, aqueles que possuem um único gene da anemia falciforme. Eles jamais desenvolverão a doença, mas podem passar o gene defeituoso aos seus filhos. “Nesses casos, nós informamos a pessoa sobre a presença do gene”, disse.

Artigos:

Inferring paternal history of rural African-derived Brazilian populations from Y chromosomes (doi: 10.1002/ajhb.22930), de Lilian Kimura, Kelly Nunes, Lúcia Inês Macedo-Souza, Jorge Rocha, Diogo Meyer e Regina Célia Mingroni-Netto, American Journal of Human Biology, 2017: http://onlinelibrary.wiley.com/doi/10.1002/ajhb.22930/abstract.

Genomic Ancestry of Rural African-Derived Populations from Southeastern Brazil (doi: 10.1002/ajhb.22335), de Lilian Kimura, Elzemar Martins Ribeiro-Rodrigues, Maria Teresa Balester de Mello Auricchio, João Pedro Vicente, Sidney Emanuel Batista Santos e Regina Célia Mingroni-Netto, American Journal of Human Biology, 2013: http://onlinelibrary.wiley.com/doi/10.1002/ajhb.22335/abstract.

Frequency and origins of hemoglobin S mutation in African-derived Brazilian populations, de De Mello Auricchio MT, Vicente JP, Meyer D, Mingroni-Netto RC, Human Biology, 2007, http://www.ncbi.nlm.nih.gov/pubmed/18494376.

Peter Moon / Agência Fapesp

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