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Quilombolas vivem em situação de miséria em comunidades de Alagoas

Família Paulino dos Santos é uma das mais antigas na comunidade Tabacaria, em Palmeira dos Índios, município do Agreste alagoano (Foto: Marcio Chagas/Site)

Família Paulino dos Santos é uma das mais antigas na comunidade Tabacaria, em Palmeira dos Índios, município do Agreste alagoano (Foto: Marcio Chagas/Site)

Berço da resistência negra no país, Alagoas mantém viva a memória de Zumbi dos Palmares, líder dos povos escravizados na luta pela liberdade. Mesmo com essa importante representatividade, muitos descendentes destes povos, conhecidos como quilombolas, ainda enfrentam racismo, miséria e vivem em comunidades isoladas com pouca ou nenhuma qualidade de vida.

Brasil tem mais de três mil comunidades quilombolas em todo o país, segundo estimativa do governo federal, mas nem todas são reconhecidas. Em Alagoas são cerca de 69. Na data em que se celebra o Dia da Consciência Negra, 20 de novembro, o Site mostra as dificuldades enfrentadas por famílias que vivem em uma dessas comunidades, a Tabacaria.

A comunidade fica na zona rural de Palmeira dos Índios , município da região Agreste, a 136 km de Maceió. Algumas casas são feitas de alvenaria, mas outras ainda são de taipa ou pau-a-pique, uma antiga técnica em que é utilizada argila e madeira para construção das moradias. 

São cerca de 90 famílias quilombolas na comunidade que já foi refúgio de escravizados que fugiam em busca de liberdade. Uma das famílias mais antigas do lugar é a da dona Dominícia Paulino dos Santos, 62 anos. A matriarca da família é esposa de Gerson Paulino dos Santos, 71. Juntos, eles tiveram sete filhos e 20 netos.

“Ser negra e quilombola ainda é um sofrimento muito grande. Imagine você está na sua barraquinha, ajeitando um café para tomar, aí passa um ou outro em frente ao seu barraco, gritando: ‘levanta, dorme-sujo’. É uma humilhação! Quem dorme sujo é porco. Tudo isso nós já passamos aqui. Tudo isso nós já levamos aqui”, conta dona Dominícia.

Ser negra e quilombola ainda é um sofrimento muito grande" Dona Dominícia Paulino, 62 anos, remanescente quilombola

As ofensa racistas são constantes, mas ela ainda tem esperança que as coisas mudem e resiste em deixar o local onde viveram os seus antepassados.

“Ouvimos coisas horríveis. ‘Negro nojento, vocês vão levar uma camada de bala, rebanho de ladrão’. Eu já ouvi isso muitas vezes. Fazer o quê? Não podemos fazer nada, quem sabe um dia as pessoas pensem diferentes. Pode acontecer o que for, daqui eu só saio morta, quando Jesus me tirar”, relata.

Orgulhosa da sua raça e da sua história, dona Dominícia é toda bom humor, mas se entristece ao falar sobre as condições miseráveis em que a família vive.

“Não temos onde fazer nossas necessidades porque no meu barraco não tem banheiro, nem tem condições de ter. Quando precisamos, vamos ali na mata. Eu não tenho cerimônia de falar para as visitas, é triste, mas é a realidade da gente. Tomo banho na sala, pegamos a água no açude e, aqui mesmo na sala com o chão de barro, eu me banho. Sorte que não tem lama, porque nosso Agreste é muito quente.

O alimento também é escasso, e a maioria das famílias precisa plantar para comer. "Aqui nós plantamos feijão, e, graças a Deus, plantamos e colhemos. Este ano o milho não deu muito certo, o feijão nós tiramos um pouco mais porque plantamos mais cedo. Dura muito tempo. Chega um filho e diz que está precisando porque no mês não conseguiu tirar o dinheiro para comer, e eu dou. Feijão e farinha é a comida que nos deixa fortes”.

 

Uma das mais antigas moradoras da comunidade quilombola Tabacaria é dona Dominícia Paulino dos Santos, de 62 anos (Foto: Marcio Chagas/Site)

Uma das mais antigas moradoras da comunidade quilombola Tabacaria é dona Dominícia Paulino dos Santos, de 62 anos (Foto: Marcio Chagas/Site)

Costumes históricos 
O casal tenta manter viva a tradição que vem dos antepassados. O nome Tabacaria remete às tradições e aos costumes dos antigos moradores do local, que plantavam tabaco para comércio e consumo do fumo. 

As famílias que hoje vivem na comunidade lembram que os fazendeiros da época compraram aquelas terras em troca de comida e muitos perderam suas propriedades, mas um decreto do governo federal em 2008 reconheceu a área de 410 hectares como a primeira comunidade remanescente de Quilombo dos Palmares e ela passou a pertencer à Associação do Desenvolvimento da Comunidade Remanescente de Quilombo da Tabacaria.

“Toda a família do meu 'véio' [esposo] fumava tabaco, morava aqui e registrou o nome. Não foi mais plantado fumo aqui porque os fazendeiros tomaram conta das terras e pararam. Eles trabalhavam três dias para receber o equivalente a um. A bisavó do meu marido tinha um terreno aqui neste local onde estamos, o nome dela era Madalena, os fazendeiros chamavam ela para trabalhar, mas afirmavam que não tinham dinheiro, trocaria o trabalho por terra. Nesse tempo era muita fome, ninguém tinha o que comer”, lembra dona Dominícia.

A agricultura continua sendo a fonte de sustento de muitas famílias na Tabacaria. Elson Paulino, um dos filhos do casal, conta eles recebem algumas cestas básicas, mas não é sempre. 

"De vez em quando aparece alguma coisa. Aqui plantamos feijão, milho, batata, mandioca. De tudo plantamos um pouco. Nós estamos trazendo de volta o costume da mandioca e estamos batalhando para a construção de uma casa de farinha para trabalhar com a mãe Terra. É uma vida de sobrevivência, mas nos sentimos felizes”.

Além do plantio, outro costume mantido na comunidade é a prática religiosa afrodescendente. Mas os quilombolas convivem com o medo do preconceito depois que uma igreja protestante se instalou no local.


“Nós não somos proibidos de praticar nossas danças, mas quando sabem, os próprios moradores da comunidade (que se converteram) nos olham atravessado, com indiferença. Somos diferentes por querer manter viva uma cultura tão sofrida que nosso povo conquistou há tanto tempo. Não podemos deixar morrer o que registra, acima de tudo, nossa história”, explica a matriarca.

A fé é um dos principais legados deixados pelos ancestrais. "Quando pedimos algo com fé, procuramos na terra e a Mãe Terra nos mostra. Se estamos doentes e queremos um remédio para a cura, ela nos mostra e nós vamos buscar dentro da mata”, explica o filho do casal, Elson.

O pai da família, Gerson Paulino, soma a esses costumes as apresentações folclóricas, como o reisado e a banda de pífano, tradição mantida da época da colonização portuguesa. “Somos seis e eu toco nas festas e canto. Eu e ela [a esposa] que cantamos. Essa banda existe há mais de 300 anos, geração em geração, o reisado começou na Tabacaria com meu bisavô. O reisado certo é com 22 pessoas. Eu quero concentrar agora mais nas crianças para que a tradição não morra”, explica.

“Não temos incentivo, falta ajuda da prefeitura para confeccionar nossas roupas, para nos ajudar na locomoção e apresentações. Nós somos esquecidos. Não queremos ter que praticar nossa cultura escondidos. As pessoas precisam entender que isso faz parte da nossa história, precisam saber entrar na nossa comunidade com mais respeito”, afirma Gerson Paulino.

 

Crianças brincam em frente à casa dos avós quilombolas (Foto: Marcio Chagas/Site)

Crianças brincam em frente à casa dos avós quilombolas (Foto: Marcio Chagas/Site)

Novas gerações 
A terra seca, o forte calor e as dificuldades financeiras parecem não ser problemas grandes a ponto de preocupar as crianças da comunidade. Enquanto a reportagem conversava com os adultos, os netos de dona Dominícia brincavam do lado de fora, em frente à casa da avó. A mãe deles tinha ido ao centro de Palmeira dos Índios naquela manhã.

Os irmãos Naélio, de 13 anos, Alan, 11, e o pequeno Eronildo, 7, brincavam com pedras, simulando um jogo de chimbra (conhecido como bola de gude em outras regiões do país), em que os participantes tentam acertar as peças do oponente. O prêmio para cada acerto, no jogo adaptado pelos mais novos remanescentes quilombolas, eram os “santinhos” de candidatos às eleições municipais.

Uma brincadeira improvisada, mas que rendia boas gargalhadas dos pequenos. “A gente brinca assim. Quando tem chimbra, a gente usa, só que é difícil de ter aqui, aí arrumamos umas pedras e ficamos jogando. Eu sou melhor, dou aula a todos eles”, gabava-se o mais velho.

Mas nem tudo é brincadeira. A educação das crianças preocupa os mais velhos, já que há apenas uma creche na comunidade, onde não existe estrutura para abrigar todas as crianças. Os que já têm idade para entrar no ensino fundamental, têm que sair da comunidade para estudar e isso pode levar à perda da cultura dos antepassados.

"A própria escola da comunidade virou extensão de escola do município e misturaram os nossos filhos com os filhos dos que não são quilombolas. Já não trabalham nossa cultura, quando levamos algum projeto, eles enrolam e não fazem. Se a escola estivesse aqui, a própria comunidade trabalharia a cultura e a nossa origem e nunca perderíamos essa tradição”, lamenta o tio dos meninos, Elson.

 

Famílias descendentes de escravos tiveram área reconhecida como comunidade quilombola em 2008 (Foto: Marcio Chagas/Site)

Famílias descendentes de escravizados tiveram área reconhecida como comunidade quilombola em 2008 (Foto: Marcio Chagas/Site)

Poder público diz que garante assistência 
A prefeitura de Palmeira dos Índios informou por meio da assessoria de imprensa que garante os serviços de assistência social aos quilombolas. Disse ainda que os moradores recebem duas visitas mensais dos técnicos da Secretaria de Assistência Social, por meio dos conselhos de Referência de Assistência Social (Cras) e Regional de Engenharia e Agronomia (Crea), sendo 100% da população beneficiada pelo Bolsa Família, através do Governo Federal. 

Em relação ao segmento da Educação, a assessoria do município frisou que existe um trabalho continuado na região, com escolas e creches na comunidade.

O governo do estado, por sua vez, declarou que, conduzido pela proposta de propagar a diversidade cultural e manter vivas as tradições dos povos alagoanos, foi criado um Comitê Técnico de Políticas Intersetoriais para o Desenvolvimento dos Povos Tradicionais, que tem como objetivo fomentar políticas públicas de estado para o desenvolvimento dos povos tradicionais de quilombo na redução da vulnerabilidade social, tanto no desenvolvimento social como na questão da segurança.

“Esta é uma nova proposta para resgatar a cultura dos quilombolas, através de todos os órgãos que compõem o comitê, com ações e projetos, para colocarmos em prática nos 69 quilombos de Alagoas”, explicou a gerente de Articulação Social do Gabinete Civil, Edinilza Lima.

Mesmo diante de um cotidiano marcado pela adversidade na comunidade, a família remanescente de quilombo continua lutando para manter viva a cultura afrodescendente no território, enxergando um futuro de dias melhores, por meio da luta diária do povo. Para eles, manter a liberdade conquistada no período colonial será, até o fim dos dias, motivo da luta e resistência.

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