Violência em nome de deus
Por Ariana Lobo
Casos de intolerância religiosa foram vistos com frequência no ano de 2015 em todo o país. Um dos que alcançaram maior repercussão na mídia ocorreu na Zona norte do Rio de Janeiro em junho, quando uma garota de 11 anos foi atingida por uma pedra na cabeça enquanto voltava de uma reunião de Candomblé. Os autores do ato foram dois homens que após alvejarem a garota, fugiram ao embarcar em um ônibus.
Em Goiás, as cidades do entorno de Brasília foram as que mais apresentaram casos no estado. Santo Antônio do Descoberto, Águas Lindas e Valparaíso foram algumas das cidades que serviram de cenário para violência no contexto religioso no ano passado. Templos invadidos, depredados e incendiados, além de imagens em vias públicas destruídas, revelam a discrepância de seres humanos que creem que seu modo de se relacionar com o sagrado é mais certo que o de pessoas que possuem visões diferentes.
Fé que agride
Na última terça-feira (05), no setor Cidade Livre em Aparecida de Goiânia, a jovem Isadora Jaques Leão, de 16 anos de idade, foi espancada por duas colegas da escola em que estuda simplesmente por ter postado uma foto em sua rede social com um colar que remete à sua religião: o Candomblé.
A mãe de Isadora, Cristiany Leão de Souza, 37, em entrevista ao Diário da Manhã, contou como se deu o ocorrido. Após postar a foto, boatos começaram a ser espalhados na escola e os colegas começaram a chamá-la de ‘macumbeira’. Uma turma grande de alunos se organizou após a aula e esperou Isadora sair da escola para pegá-la em uma emboscada, mas um professor percebeu o perigo e levou a garota em casa.
Os alunos continuaram perseguindo Isadora nos dias que se seguiram. No dia seguinte, voltando para casa com amigas, algumas das pessoas que integravam o grupo do dia anterior, esperaram Isadora em uma praça e a surpreenderam quando a garota passava por lá. Os amigos de Isadora perceberam o perigo e deram uma bicicleta para ela fugir, mas uma das agressoras puxou Isadora pela mochila de cima da bicicleta, a derrubou e exclamou: “Você não é a macumbeira? O que a sua macumba faz agora?”. Antes que a agressão fosse consumada, os amigos de Isadora a defenderam e ajudaram-na a fugir.
Foto publicada por Isadora em seu Facebook que motivou a agressão por parte de colegas de escola. Foto: Reprodução/ Facebook
A partir desse dia, Isadora ficou alguns dias sem frequentar a escola, por medo. Cristiany conta que comunicou o ocorrido à coordenação da escola, que se prontificou em resolver o problema, junto com os alunos agressores. Após alguns dias, Cristiany foi procurada pela coordenação que pedia para que Isadora voltasse a frequentar as aulas que o problema havia sido resolvido.
Desconfiada, Cristiany levou e buscou a filha na escola nos dias que se seguiram, mas em um dia que não pode levá-la devido a um problema com o carro, Isadora foi novamente perseguida e, na mesma praça em que foi abordada anteriormente pelos agressores, acabou sendo espancada por duas garotas, que estavam escoltadas por mais três colegas.
Marcas da agressão sofrida pela jovem. Foto: Arquivo pessoal
Enquanto batiam em Isadora em nome de um Deus que consideram maior, as agressoras chamavam-na de macumbeira e desafiavam Isadora a se defender das agressões por meio de macumba. “Derrubaram ela no chão, chutaram, deram murros nas costas e na boca da minha filha”, recorda Cristiany. Quando se cansaram de espancar Isadora, as garotas a deixaram no chão e foram embora. Isadora se levantou e foi para casa, sangrando e chorando.
Pé de Cristiany, quebrado em 2013 por um vizinho que a perseguia por sua escolha religiosa. Foto: Reprodução/Facebook
Cristiany fez ocorrência na delegacia de polícia e nela consta lesão corporal e injúria racial motivado por preconceito religioso. Exame de corpo de de delito foi feito em Isadora, comprovando a agressão. Cristiany levou fotos de conversas em redes sociais que comprovam que a agressão foi previamente planejada e encabeçada pelas duas garotas que a espancaram.
Conforme informações de Cristiany, as mesmas alunas autoras da agressão estão se organizando nas redes sociais para voltar a agredir Isadora, uma delas tendo comunicado que está levando uma faca para a escola. Cristiany conta que a família está toda abalada e assustada com a situação, com medo de que a agressão dessa semana não seja a última.
“Saber que sua filha foi jogada no chão em uma praça, levou murros, chutes, tapas e tudo mais de duas garotas, simplesmente porque não escondeu sua religião e não tem vergonha de ser o que é, é revoltante. Ver a filha chegar com a boca sangrando e chorando, ver a agressora dizer que ‘fez porque tem razão’ e com total falta de caráter se julgar correta. A própria escola admite que foi intolerância e que tentaram resolver. É realmente sensação de impotência”, desabafa a mãe.
Cristiany também foi vítima de intolerância religiosa há três anos, quando um vizinho a agrediu fisicamente e quebrou seu o pé esquerdo. Na época, o vizinho perseguia Cristiany, apedrejava sua casa, chamava a polícia quando ela fazia cerimônias religiosas, ligava som alto e “expulsava demônios” em um microfone nos momentos de rituais religiosos, o que causou enormes transtornos emocionais na família.
“O tempo passa, mas as marcas ficam. Até hoje tenho problemas no pé por má cicatrização. Mas passou. Será mesmo que passou? Pensando melhor acho que não, porque nada é feito de fato que essa mentalidade racista, preconceituosa e intolerante seja mudada. O tempo passa e o que muda são as vítimas, um dia sou eu, outro dia são outros e agora minha filha, depois dela serão outros e assim segue. Não entendo a necessidade das pessoas em querer punir outras simplesmente por pensarem diferente, acreditarem em coisas diferentes. Agressão física seja por qual motivo for é, além de maldade, crime. E as religiões (incluindo a minha) pregam o amor, o respeito, o perdão, a caridade… é contraditório alguém se basear em ensinamentos religiosos para justificar agressões como essas. Quem agride em nome da religião na verdade não entendeu os ensinamentos de sua própria religião”, desabafa Cristiany.
Outros casos
Em 12 de setembro do ano passado, dois templos de religião de matriz africana foram incendiados em cidades no interior de Goiás, no entorno do Distrito Federal. Um dos casos ocorreu em Santo Antônio do Descoberto (180 km da capital goiana) e outro em Águas Lindas de Goiás (cerca de 190 km de Goiânia).
Em Santo Antônio do Descoberto o ataque foi mais grave, o terreiro ficou completamente destruído após ser incendiado. Os vizinhos ouviram o barulho do fogo e tentaram apagá-lo, mas não conseguiram. O mesmo templo havia sofrido ataque semelhante no mês anterior. Na época, o responsável pelo templo informou que o prejuízo que a casa religiosa teve alcançava os R$ 100 mil.
Já em Águas Lindas, os vizinhos tiveram êxito na tentativa de apagar o fogo e evitar maiores estragos, visto que os autores arrombaram o portão do templo com uma saveiro antes de atear fogo e o barulho alertou as pessoas que se localizavam nos arredores.
Também em Águas Lindas, uma estátua de Nossa Senhora Aparecida na entrada de uma rua comercial do município foi atacada a pedradas por um morador inconformado com o fato da prefeitura gastar dinheiro público com imagens religiosas. A mesma imagem já havia sido vítima de ataques em 2012, alcançando, na época, grande repercussão.
O terreiro Ile Aira Axe Mersan Orun, localizado em Valparaíso de Goiás, município do Entorno do Distrito Federal foi invadido três vezes em 2015: em janeiro, agosto e dezembro. A suspeita dos religiosos que frequentam o local recaíram na época sobre imobiliárias interessadas em comprar o terreno do terreiro, intolerância religiosa e racismo. As suspeitas foram reforçadas pelo fato de os invasores não terem levado nenhum objeto de valor, apenas quebraram objetos e reviraram tudo.
O ano de 2016 não parece fugir à regra. Em janeiro, em Sobradinho, município do Distrito Federal, o Centro Espírita Chão de Flores também foi vítima de intolerância religiosa ao ser incendiado durante a madrugada. O ataque deixou um ferido, que sofreu queimaduras de 1º e 2º graus e precisou ser encaminhado para o hospital. No mesmo dia do ataque, os responsáveis pelo Centro informaram que não iriam parar as atividades e que serviriam sopa às pessoas carentes, conforme estava programado.
O Centro Espírita Afro-Brasileiro Ilé Axé Iemanjá Ogum Té, em Valparaíso, no qual ocorriam religiões da religião de matriz africana candomblé foi invadido e completamente destruído no início de março deste ano. Os vândalos levaram a baixo teto e paredes, impossibilitando totalmente qualquer atividade religiosa no local.
O Diário da Manhã entrou em contato com os delegados das cidades citadas acima de modo a saber o andamento das investigações dos casos, mas até o fechamento dessa edição não obteve resposta.
FONTE: Diário da Manhã em 08/04/2017