Descendentes de escravos no Amazonas conseguem título de remanescentes de quilombo
Viva na cor da pele e na musicalidade de um povo, nas crenças religiosas e na luta pelo direito de ser livre. Assim, a história de uma comunidade quilombola fundada no meio da floresta amazônica, há aproximadamente 150 anos, foi finalmente reconhecida pelo governo brasileiro, e hoje os negros da comunidade Sagrado Coração de Jesus do Lago de Serpa têm muito o quê comemorar.
Localizada a aproximadamente 170 quilômetros de Manaus, em linha reta, e oito quilômetros acima da sede do Município de Itacoatiara, ao redor de um grande lago, essa comunidade formada por descendentes dos últimos escravos africanos chegados no Brasil conseguiu resistir ao tempo, ao preconceito, e fez sobreviver por mais de um século a cultura e as tradições. Hoje formado por 500 pessoas, o antigo quilombo ocupa 2.525.814 hectares de terra.
E foi no último dia 9 de dezembro que a Fundação Cultural Palmares, vinculada ao Ministério da Cultura, concedeu o título de remanescente de quilombolas à população do S. C. J. do Lago de Serpa: vidas que fazem parte da história do Amazonas, que se confundem com a história afro-brasileira, e que carregam até hoje a alma de seus antepassados.
Os registros documentais sobre a origem dessa comunidade eram poucos e foi preciso trabalhar duro para conseguir levantar informações sobre a história dela. Os pesquisadores Claudemilson Nonato Santos de Oliveira e Thyrso Muñoz Araújo foram os responsáveis por produzir um dossiê sobre a S. C. J. do Lago de Serpa e enviar tal documento à Fundação Palmares.
“A escravidão e a cultura africana na Amazônia foram colocadas em um segundo plano por muito tempo justamente pela ideia que a região era composta estritamente pela cultura indígena”, explicou Claudemilson. Os pesquisadores fizeram levantamento bibliográfico, pesquisa de campo, coleta de depoimentos de antigos moradores e filmagem – um trabalho que começou há seis anos.
África
Conforme estudo bibliográfico, a origem ancestral dessa comunidade remonta a metade do século XIX, época final da escravidão no Brasil, por volta do ano de 1855, quando Dom Pedro II havia proibido a chegada de navios negreiros em território nacional – sob pressão da coroa britânica.
Apesar da proibição, muitos contrabandistas ainda furavam o bloqueio e traficavam carga humana negra para o Brasil vindos do continente pelo oceano Atlântico. Conforme os registros, um dos últimos desembarques de negros clandestinos no Brasil ocorreu em 1857, na costa litorânea de Pernambuco, próximo à cidade de Serinhaém.
Após alerta das autoridades britânicas em Angola, o Império brasileiro soube que um navio vindo do rio Zaire, ou rio do Congo, hoje no território do Congo, tinha como destino a costa do Brasil. A Marinha montou guarda e conseguiu apreender um palhabote (veleiro de dois mastros) com 210 negros. Os traficantes, para não serem pegos, abandonaram a carga e pularam em alto-mar.
Amazonas
Confiscados pelo Ministério da Justiça, os 210 africanos ficaram à disposição da coroa – mas por pouco tempo. O maior empresário do Império brasileiro, Irineu Evangelista de Souza, o Barão de Mauá – dono do Banco Mauá, atual Banco do Brasil – conseguiu junto à Coroa a permissão para trazer 36 daqueles negros para trabalhar, de forma remunerada, em colônias extrativistas no Amazonas.
Irineu, dono da Companhia de Navegação da Amazônia, tinha desde 1854 a concessão pública para explorar as riquezas da Amazônia durante 30 anos. Ele trouxe os 36 negros, mas durante a viagem dois deles morreram. No Amazonas, Irineu tinha duas colônias: uma na orla de Manaus, na atual ponta das Lajes, e outra em Itacoatiara.
A colônia de Manaus, na “Ponta das Lajes”, durou três anos e depois foi à falência. Entretanto, a colônia em Itacoatiara, naquela época chamada de Vila de Serpa, durou até 1860. Lá, em 2 milhões de hectares de terra, os negros trabalhavam em serraria, olaria, carpintaria naval, agricultura, pecuária e lavoura. O local onde a colônia funcionava é hoje em dia o atual bairro da Colônia, na cidade de Itacoatiara.
Refúgio
Após uma grave crise financeira provocar a falência de todas as empresas do grupo Mauá, no Brasil e no exterior – o Banco Mauá tinha filiais em Montevidéu, Nova York, Londres e Paris –, a colônia na Vila de Serpa também faliu e acabou vendida em leilão para duas famílias empresariais: os irmãos judeus Marcos e Moisés Ezagui ficaram com a parte industrial e o empresário português Antônio Pataraz adquiriu a parte da agricultura.
Com a falência, alguns negros continuaram a trabalhar para os novos empresários, outros foram para casas de famílias e comércios, mas a maioria, desempregada, teve dificuldade de viver no ambiente urbano e, por isso, migrou e se isolou em uma região de difícil acesso, um quilombo oito quilômetros acima dali: a atual comunidade S. C. J. da Vila de Serpa.
Naquela época, o lugar era de difícil acesso. A chegada era apenas pelas águas de um estreito igarapé onde não passava barcos grandes, apenas pequenas embarcações – no período da vazante o caminho ficava ainda mais tortuoso. Segundo o pesquisador Claudemilson, a migração do povo negro para aquela nova região é confirmada através de depoimentos recheados de memória oral dos antigos moradores da comunidade.
E no meio da mata, os negros se multiplicaram e formaram uma comunidade livre que sobrevivia e resistia à opressão externa. Além dos negros da colônia (vindos por Pernambuco), moradores antigos afirmaram que a comunidade também é formada por escravos que vieram da África para a Amazônia pelo estado do Maranhão, segundo os pesquisadores.
“Essa diáspora (deslocamento) também ocorreu como forma de se protegerem da violência da escravização e discriminação por parte dos brancos”, disse Claudemilson. Segundo ele, o isolamento era necessário como uma proteção, já que naquela época, anterior à Abolição da Escravidão (1888), o negro era rejeitado por causa da cor da pele.
Comunidade
Após 150 anos, a comunidade S. C. J. do Lago de Serpa “se reconstruiu”. Os moradores herdaram culturas e saberes indígenas e também dos brancos, mas ainda mantém em si as histórias das gerações e gerações de negros. Hoje, eles sobrevivem com trabalho tirado da agricultura familiar, criação de pequenos animais e extrativismo. Costumes do caboclo como culinária, uso de ervas e contato espiritual com a floresta também foram herdados.
Crenças religiosas
Os moradores da comunidade Sagrado Coração de Jesus do Lago de Serpa são, majoritariamente, católicos – poucos são protestantes ou adventistas. Na época do Império, durante o período de incursão da igreja Católica na Amazônia, as crenças religiosas de matriz africana se perderam com o tempo. Também foram recriminados pelo poder público outros costumes e festejos de tradição africana.
Segundo o pesquisador Claudemilson Nonato Santos de Oliveira, no Império muitos escravos adultos foram batizados e convertidos ao catolicismo. Hoje, eles rejeitam, por exemplo, a umbanda, crença originalmente africana.
O próprio nome da comunidade, antes “Lago dos Pretos”, recebeu elementos da igreja (o termo Sagrado Coração de Jesus). “Pelo lado humano, a história deles é mais importante do que eles têm ou perderam com o tempo”, explica o pesquisador Thyrso Muñoz Araújo.
Hoje, a maioria dos moradores é devota de Nossa Senhora de Aparecida (santa negra católica). Eles promovem uma procissão fluvial anualmente durante o mês de setembro. Entretanto, essa data não é oficial para a Igreja Católica, que festeja a santa no dia 12 de outubro. “Os negros têm a procissão fluvial em setembro, e dá até mais gente. E o da igreja é a tradicional”, explica Thyrso.
Segundo pesquisador, a igreja quis transformar os dois festejos em um só, em 12 de outubro. “Até hoje existe esse conflito. Eles queriam unificar a festa. É mais uma prova de discriminação da igreja”, lamenta Thyrso. Para ele, a permanência da procissão à santa em setembro representa uma nova resistência do povo negro perante a igreja e ao homem branco.
Ainda conforme Thyrso, muitos moradores rejeitaram, de início, a condição de serem descendentes de africanos e da cultura negra. “Foi preciso conscientizá-los”, contou o pesquisador. Todos os comunitários tiveram que assinar um documento afirmando se reconhecerem como remanescentes de quilombolas.
Especulação imobiliária
Apesar de agora serem oficialmente reconhecidos como remanescentes de quilombolas, os moradores da comunidade S. C. J. do Lago de Serpa não têm o título de propriedade das suas terras. “Existem conflitos desde especulação imobiliária, grileiros, famílias que perdem suas terras e são expulsas”, denuncia Thyrso Muñoz.
Segundo ele, alguns moradores venderam pedaços de seus territórios a preços irrisórios. “Uma pessoa comprou um terreno de um morador a preço muito baixo: R$ 15 mil. Depois dividiu (loteamento) e revendeu. São terrenos de pessoas carentes”, lamenta. A maioria das casas é de madeira.
Para conseguir a propriedade das terras, os moradores deverão enfrentar uma nova batalha: transformar os 2 milhões de hectares em reserva quilombola, concessão feita pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), o que demora entre cinco a dez anos, segundo os pesquisadores.
A comunidade existe dentro de uma Área de Preservação Permanente (APA) – lei 4126 de agosto de 1998. Entretanto, essa lei não é cumprida, conforme denunciam Claudemilson e Thyrso. “APA só está no papel, mas nunca foi implantada”, denuncia Thyrso.
Segundo ele, além da especulação imobiliária, está havendo a destruição da mata ciliar ao redor do lago, aterramento das nascentes do rio e diminuição da fauna de peixes.
Acesso
Atualmente o acesso à comunidade é feito pelo ramal de Serpa, antigo ramal Osório da Fonseca, que fica no km 256 da rodovia estadual AM-010 (Manaus-Itacoatiara). A comunidade não tem acesso a telefone, não possui nenhum hospital e não recebe água tratada ou saneamento básico. O local é abastecido com energia elétrica.
Educação
A comunidade recebeu recentemente uma unidade escolar de Ensino de Jovens e Adultos (EJA), por meio da Coordenadoria Regional de Educação de Itacoatiara (Crei), da Secretaria de Estado de Educação (Seduc) em parceria com a Prefeitura de Itacoatiara.
Ao todo, 68 descendentes de negros passaram a ler e escrever pela primeira vez, já que devido ao isolamento histórico a comunidade não tinha acesso à educação. “Tem gente com 70 anos que começou a estudar agora. Isso faz parte de uma dívida que está sendo paga”, disse Thyrso.
Musicalidade
A tradição musical na comunidade Sagrado Coração de Jesus do Lago de Serpa acompanha dois segmentos, conforme os pesquisadores Claudemilson e Thyrso: um é o religioso, com músicas de melodia e letras de conteúdo católico, e o outro é o profano, composto pelas músicas juninas, de festejos em geral, torneios e sambas. Os instrumentos usados, em maioria, são feitos de madeira e corda, como maracás, bandolins, cavaquinhos, violão, tambor e atabaque.
Reconhecimento
No Amazonas, apenas nove comunidades quilombolas conseguiram a certificação da Fundação Palmares: cinco em Barreirinha (comunidades Santa Teresa do Matupiri, São Pedro, Trindade, Ituaquara e Boa Fé), duas comunidades em Novo Airão (Tambor), uma em Manaus (Barranco, no bairro Praça 14) e agora a de Itacoatiara, conforme o pesquisador Emmanuel de Almeida Farias, da Nova Cartografia Social da Amazônia.
Signatário
A partir de 1960 o Brasil foi signatário da Convenção da Organização Internacional do Trabalho, que promoveu políticas públicas em favor das populações afro-descendentes, indígenas e ciganos. Em 2003, foi sancionada a lei 10.639, que altera a Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB) e instituiu a obrigatoriedade do ensino da história e da cultura afro-brasileira nas escolas públicas e particulares.
Pesquisa
Claudemilson e Thyrso são membros da Academia Itacoatiarense de Letras (AIL) e tiveram a ideia de pedir o reconhecimento da comunidade à Fundação Palmares. Na equipe, também trabalharam o mestre em Sociologia Eder Gama, os técnicos Daniele Miranda Batista e João Vieira, além dos parceiros Instituto Ganga Zumba e Instituto de Terras do Amazonas (Iteam).
Currículo
Claudemilson é professor da Seduc, pesquisador do Programa Ciência na Escola, da Fundação de Amparo à Pesquisa do Amazonas e Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia, e mestre em Sociedade e Cultura na Amazônia pela Universidade Federal do Amazonas. Ele escreveu o livro “Nasci nas matas e não tive senhor” sobre a história da comunidade.
Thyrso está há seis anos produzindo um documentário sobre a comunidade. A primeira parte foi concluída e, de dois anos para cá, ele vem capturando as imagens.