Visita à memória
É comum em viagens à Alemanha o turista passar por um campo de concentração, para conhecer os horrores do nazismo — e manter enterrado o regime que matou seis milhões de judeus, três milhões de soviéticos e centenas de milhares de ciganos, homossexuais e portadores de deficiência. Até 2018, centenário do fim da Primeira Guerra Mundial, três milhões de visitantes de Reino Unido, África do Sul, Austrália, Canadá e Nova Zelândia irão à França homenagear parentes e compatriotas mortos em batalhas emblemáticas no país. O par de exemplos caracteriza o turismo de memória, que aporta este mês no Rio de Janeiro pelas mãos de três historiadoras. Elas mapearam locais marcados pelo tráfico e pela exploração da mão de obra escravizada e montaram quatro roteiros turísticos na capital e no interior do estado.
“Passados Presentes” é o nome do projeto criado para resgatar a memória da escravidão e também a herança cultural dos africanos trazidos à força ao Brasil. Do século XVI ao XIX, o país recebeu quase metade dos 12,5 milhões escravos dirigidos ao continente americano. Nos anos 1800, entraram 1,5 milhão de homens, mulheres e crianças, a maioria pelo Rio, via Cais do Valongo, sítio arqueológico encontrado durante as obras de revitalização da Região Portuária, e terminais clandestinos do interior, caso da antiga Fazenda Bracuí, em Angra dos Reis.
As duas áreas integram os roteiros que as pesquisadoras Hebe Mattos, Martha Abreu (ambas da UFF) e Keila Grinberg (UniRio) organizaram e sinalizaram em parceria com comunidades locais. Na capital, o Circuito da Capoeira passa pelo Valongo e por marcos da arte e da religião africanas. Os demais são a cidade de Pinheiral, tida como a capital do jongo no estado, e os quilombos São José (Valença) e Bracuí. O site do projeto já está no ar; o aplicativo com os pontos de memória estará disponível dia 26, data estadual em homenagem ao jongo.
A intenção mais óbvia é estimular o turismo e gerar trabalho e renda para comunidades quilombolas e jongueiras. Jeanine Pires, ex-presidente da Embratur e atual secretária de Turismo de Alagoas, berço de Palmares, diz que o modelo pode inspirar iniciativas semelhantes país afora. Mas há ainda o benefício inestimável de dar visibilidade a pessoas que a sociedade jamais enxergou. “Eles são descendentes da última geração de africanos escravizados. Estão vivos e guardam tradições que o Brasil desconhece. Os visitantes vão conhecer não apenas os horrores da escravidão, mas a herança africana na música, na dança, na gastronomia. É passado, mas também é presente”, diz Keila.
Foi a Constituição de 1988 que reconheceu o direito à terra dos remanescentes de quilombo. Na última década e meia, completa a historiadora, tomou forma o arcabouço legal de reparação da escravidão, que passa pelas políticas de ação afirmativa. Mais recentemente, a demanda por informação oficial também disparou. Este ano, a OAB Nacional instituiu a comissão da verdade da escravidão negra. No Rio, o grupo foi empossado dia 31 de março, com o advogado Marcelo Dias na presidência. Foram montados três grupos de trabalho, dedicados a pesquisar bibliografia, investigar remanescentes e estreitar relações com instituições de Portugal, Angola, Moçambique, Cabo Verde e Estados Unidos. Até o fim de agosto, estará concluído o cronograma de audiências públicas em cidades fluminenses, da Baixada a Campos, passando por Petrópolis e Angra. Minas Gerais também já formou comissão da verdade. Vem História.