Conheça o quilombo do livramento, a Paraíba além das praias
Mais do que um povoado rústico que soube preservar seu casario de pedras e vielas com chão de terra batida, Livramento é endereço de uma gente que não se cansa de contar, com orgulho, as histórias daquele cenário de tons alaranjados encravado no topo de uma montanha. "Você não sabe, mas eu vou dizer", esta é a deixa para Rosa Pereira dos Santos, de 78 anos, começar uma deliciosa sequência de detalhes que se entrelaçam (às vezes, de forma confusa) e ajudam a costurar a história daquele povo que, por pouco, não ficou isolado detrás dos muros originais de pedras erguidos na época em que chegaram à região os primeiros negros fugidos da escravidão no Brasil.
Essa comunidade quilombola do município de São José de Princesa, a 460 km de João Pessoa, abriga 49 famílias que moram a 1135 metros sobre o nível do mar (das quais 90% são negras) em casas simples, feitas com pedras, e dependem, exclusivamente, da criação de animais e plantação de milho e feijão para o consumo próprio. Reconhecida pela Fundação Palmares como um remanescente das comunidades dos quilombos, em 2007, a Comunidade Sítio Livramento teve seu início no final do século 17, quando chegaram três famílias de negros que viajavam fugidas da hostilidade e trabalho escravo dos canaviais da costa pernambucana.
O terreno acidentado de difícil acesso e a distância do litoral garantiram ao quilombo não só a segurança daqueles primeiros moradores, mas também evitaram a visita indesejada de brancos, conhecidos no período colonial como capitães do mato, em busca de escravos fugitivos.
Protegidos pelo isolamento e pelo medo de deixar as terras locais, aqueles negros teriam conquistado sua liberdade quase 100 anos antes da Lei Áurea, norma assinada em 1888 pela Princesa Isabel, que garantia uma suposta liberdade aos negros brasileiros. A descoberta do grupo pelos frades da Ordem dos Carmelitas, anos mais tarde, trazia a possibilidade de um possível contato pacífico com os brancos e outro nome que resumisse bem sua nova condição: Livramento.
"Os primeiros negros que chegaram se esconderam em uma loca e, como os brancos nunca vieram, ficaram por aqui mesmo", resume Dona Rosa, a 'historiadora' oficial da comunidade.
COCO DE RODA PARA DANÇAR
Os moradores de Livramento, cujo nome original era Cinzeiro-Calugi, ainda relembram, em ritmo de embolada, a lenda da bela jovem que um dia fora levada por uma enchente que a carregou para um lugar tão desconhecido quanto sua cidade de origem. Até hoje é possível ouvir a música saudosa que homenageia Aiá em versos como "eu vi Aiá chorando, chorando eu vi Aiá, eu faço que tô te amando, que tô te amando e ainda vou te amar".
A mata era fechada, as casas erguidas com pedaços de pedras com cortes irregulares encontradas no próprio loca, e as camas feitas com varas forradas com esteira de bananeira. Para cada casa construída, um coco de roda era dançado para "acalmar a terra" – termo usado pela própria Dona Rosa em referência ao ato de bater os pés sobre o chão para preparar o terreno que daria lugar a mais uma construção de arquitetura rústica. Aliás, a dança é uma das poucas tradições mantidas naquelas terras, cujo resgate começou em 2003 com um trabalho de conscientização cultural que incluía um projeto baseado em informações colhidas entre os mais velhos como Dona Maria Massal, moradora que morreu em 2011, aos 101 anos.
Do cruzamento dessas informações, nasceu um histórico com foco nessa dança de roda de ritmos africanos e indígenas. "Os alunos locais iam estudar em escolas fora de Livramento e não conheciam a sua própria história", explica Eurides de Paula Santos, professora formada em Pedagogia na Universidade Federal do Vale do Acaraú e que dá aulas em uma escola localizada no interior do quilombo.