Comunidade Quilombola de Areal: resgate da cultura e tradição dos escravos
A escravidão no Brasil surgiu no século XIV. Com a escassez da mão de obra indígena, os portugueses decidiram trazer homens e mulheres da África para trabalharem nas plantações de cana de açúcar na Bahia. Com a expansão da agricultura e o desenvolvimento da colônia, os negros foram enviados a diversas partes do país, inclusive para locais com minas de ouro, a partir do século XVIII. Eles eram tratados da pior forma possível, na maioria dos casos, pois além de exercerem as tarefas mais difíceis, as condições de vida eram degradantes: alimentação precária, eram obrigados a dormir na senzala e sofriam castigos físicos diariamente.
Não bastando apenas o sofrimento infligido ao serem tornados em escravos, os negros foram retirados de seu país de origem, suas cidades e tribos e comercializados, ou seja, vendidos como uma mercadoria qualquer no mundo todo, sendo humilhados e privados de direitos básicos, principalmente a liberdade. Muitos morriam durante a viagem nos navios negreiros devido às péssimas condições destes. Eles também eram proibidos de praticarem a religião e cultura africanas. Muitos as praticavam escondidos e várias vezes acabavam punidos por tentarem expressar sua fé e tradição.
Os escravos se revoltaram e lutaram por muito tempo pela liberdade e contra essa situação injusta e desumana. Muitos fugiam e se escondiam em quilombos (local fortificado, no meio da mata, onde podiam viver em comunidade de acordo com sua cultura). Todo esse processo resultou, em 1888, na libertação dos escravos, com a criação da Lei Áurea. Porém, durante a abolição, nenhuma ação para integrar o negro a sociedade da época foi realizada. Muitos permaneceram nas fazendas, trabalhando, pois não tinham como se sustentar. E o resultado foi a exclusão econômica e social e a discriminação racial, que persistiram até o século XX.
Um ponto importante da história a ser destacado é que muitos quilombos continuaram em atividade mesmo após a abolição da escravatura. Eles deram origem às atuais comunidades quilombolas (quilombos remanescentes). De acordo com a Fundação Palmares, existem mais de mil desses quilombos remanescentes em todo o país, a maioria localiza-se nas regiões Norte e Nordeste. Os integrantes das comunidades possuem fortes laços com a cultura e tradição africanas e procuram mantê-las através de práticas religiosas, trabalho na terra, entre outros.
A criação dessas comunidades quilombolas é amparada por lei. O Decreto n.º 4.887 de 20 de novembro de 2003, regulamentou em todo território nacional os procedimentos para identificação, delimitação, reconhecimento e titulação das terras ocupadas por comunidades quilombolas. Esse decreto transferiu para o Incra (Instituto das Comunidades de Colonização e Reforma Agrária) a função de delimitar as terras das comunidades quilombolas remanescentes. E o que muitos não sabem é que há uma comunidade dessa no município de Areal.
Nome escolhido para representá-la não poderia ser melhor: Comunidade Boa Esperança. Reconhecida pela Fundação Cultural Palmares, na Certidão de Autodefinição, de 07 de fevereiro de 2013, a luta para tornar a comunidade remanescente oficial e legal começou há alguns anos. Uma área de quilombo não pode ser vendida, não podem construídos condomínios e empreendimentos Ou seja, a terra pertence somente às famílias remanescentes, passando de geração em geração. Isso é um direito garantido pela Constituição através da Lei n.º 7.668 22 de agosto de 1988, aos remanescentes de quilombos ocupam e utilizam a terra.
A história do surgimento da comunidade quilombola de Areal começa quando o fazendeiro Domingo Pereira da Costa, em 1888, no ano da abolição, doou suas terras para seus escravos. Na época, 15 famílias tomaram posse e formaram a comunidade quilombola. Eles trabalhavam nas plantações do fazendeiro e após a libertação muitos deram continuidade ao cultivo de café, cana, milho, para sobreviverem. Outros venderam a parte de terreno recebido em troca de comida. Os que permaneceram ali se desenvolveram e criaram seus filhos passando para as gerações futuras seus conhecimentos e tradições.
O bisavô de Celso da Cruz Fonseca, atual representante da comunidade quilombola Boa Esperança, Joaquim Fonseca, que era escravo, criou o filho na comunidade e saía dali apenas para comprar no armazém da região produtos como querosene, sabão e sal, pois os moradores vivam apenas daquilo que plantavam. “Criavam porcos e galinhas e armazenavam a carne em barris com banha e sal. Dessa forma podiam consumi-la aos poucos, durando até um mês. E dessa forma iam vivendo”, conta Celso. A quarta geração da família Fonseca vive ainda da terra, assim como os descendentes de outros escravos. “Nós plantamos tomate e eu faço rapadura de mamão no tacho de cobre para vender”.
Além do costume de viver da terra, os moradores da comunidade realizam festas tradicionais, como a do Maracujá, que acontece no mês de maio, na qual tudo é feito da fruta. Licores, geleias, tortas, batidas, doces da casca, entre outros. “Temos a festa da rapadura também, feita no dia da Nossa Senhora da Conceição. Costumamos celebrar outras datas comemorativas ligadas a alguns santos, sempre fazendo comidas típicas, reunindo a comunidade em volta de uma grande fogueira, com foguetório no final”, conta Celso.
Celso conta ainda que o jogo tradicional da época dos escravos, ali na região, era o “jogo de pau”. “Todos andavam com um porrete feito de madeira e qualquer problema era resolvido com ele. Havia inclusive um treinamento feito para desenvolver a habilidade para o jogo. Quando um compadre encontrava outro, antes mesmo de dar ‘bom dia’, começava o jogo e tinham que desviar dos golpes ou defendê-los, era uma forma de ver se o compadre estava esperto e servia ainda de treinamento. Meu pai chegou, quando criança, a andar com um porrete pequeno, mas não passou isso adiante. Mas meu avô era craque nisso.”.
Poucas tradições permaneceram entre as famílias da comunidade. “Existe apenas uma senhora que sabe um cântico, sem ser no idioma original, em um ritmo parecido com o da capoeira, porém mais lento. Ela aprendeu com os irmãos”, conta Celso. Mas a família Fonseca luta para manter as memórias e as tradições que ficaram da época dos escravos. É possível ainda encontrar na região os instrumentos de trabalho originais usados na fazenda e que ficaram para suas famílias. O pai de Celso restaurou alguns e construiu outros, iguais aos que foram usados por Joaquim Fonseca, visando manter a história do lugar, passando-a para filhos e netos.
Célia Barbosa Fonseca conta que a avó, Donária Maria Barbosa, também lutou para manter essas memórias e principalmente pela educação da geração futura. Durante anos e depois de várias promessas feitas em campanhas eleitorais, décadas depois, foi construída a Escola Municipal Donária Maria Barbosa, que recebeu esse nome me homenagem a senhora que tanto brigou para que houvesse uma instituição de ensino onde as crianças da comunidade pudessem ser educadas.
Quando perguntando sobre a importância da criação da comunidade quilombola, Celso diz que esse é um passo fundamental, pois é uma forma de resgatar a cultura do seu povo e de lembrar também tudo o que passaram durante a escravidão. “Nós não sofremos nada, nós temos que dar valor aos que temos sem esquecer o sofrimento dos nossos antepassados, que muitas vezes eram agredidos fisicamente, até sangrarem… era desumano”.
Solange Barbosa Fonseca revela que esse direito à terra é o mínimo que poderia ser dado aos escravos depois de tudo que passaram, todo sofrimento e todo o trabalho que realizaram e que foi fundamental para o desenvolvimento da colônia. “Principalmente depois da abolição, quando muitos ficaram sem amparo, sofrendo ainda mais e sem poder voltar para sua terra de origem”. Para Celso, isso é pouco depois de centenas de anos de escravidão, essa “indenização” não corresponde ao trabalho realizado pelos escravos.