Contra as fraudes nas cotas quilombolas e indígenas
Após mais de uma década do início das cotas no ensino superior, as transformações são visíveis, seja na universidade, seja a forma dos jovens negros se projetarem na vida, ou como a sociedade brasileira percebe as mazelas do seu próprio racismo. A universidade pública, monopólio secular de uma pretensa elite branca, começa a ter os rostos de nossa brasilidade, com todas as contradições e gargalos que o processo tem emanado. Na UERJ, tem aumentado o número de denúncias de fraudes de pessoas que se passam por pobres e negras.
E a abrangência dessas fraudes pode ser ainda maior. Na aprovação dos programas de ação afirmativa nas quase 200 instituições públicas, as previsíveis reações da burguesia às cotas foram subestimadas. Com o tempo, ela tem percebido aí um “prato cheio” para burlar o sistema. Em um país cuja corrupção é endêmica e privilégio de classe e cujo “jeitinho brasileiro” já serviu inclusive para compras de vagas em públicas, ganhando contornos mafiosos.
Vale ressaltar três aspectos nesse novo contexto. Definido mais como “reserva de vagas” do que propriamente “cotas exclusivas”, o mecanismo de acesso diferenciado acaba por favorecer os candidatos não cotistas, pois, vindos de escolas particulares podem acessar também as vagas "sobrantes" das reservadas para negros e pobres, quando esses não alcançam a “nota de corte”. Em segundo, por falta de critérios mais definidos, a burguesia tem deitado e rolado na "autodeclaração" racial. Em terceiro, vem as fraudes mais explícitas, como a do Rio de Janeiro do rapaz que se passou por filho da empregada doméstica da família.
Na Bahia, as fraudes atingem também as vagas exclusivas para quilombolas e indígenas. Mesmo com todo o controle social exercido pelos movimentos negros e quilombolas, percebemos que é necessário um maior cuidado.
Já foram encaminhadas à Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia (UESB) solicitações da relação de todos os estudantes da instituição que estejam matriculados tendo sido aprovados na vaga quilombola, bem como, o nome das respectivas comunidades e lideranças que avalizaram as matrículas. Pediremos o mesmo às demais instituições públicas da Bahia que adotam cotas quilombolas (UFBA, UESC, UEFS e UFRB).
Nos últimos anos, aumentou o número de aprovações nas vagas quilombolas de candidatos de outras regiões. O que é plausível, considerando as mais de 460 comunidades quilombolas da Bahia e as quase 3.200 comunidades quilombolas do Brasil, todas reconhecidas pela Fundação Cultural Palmares (FCP). De posse da carta de auto-reconhecimento emitida pela FCP, os moradores da comunidade podem acessar, além da prioridade em diversas políticas públicas, a matrícula em vagas destinadas a quilombolas em universidades públicas da Bahia, de Goiás, Maranhão e Pará.
A cota adicional é um direito, uma conquista histórica. Uma reparação. Uma ação afirmativa. Cada vaga para quilombola só pode ser preenchida por quilombolas que tenham nascido e vivido no quilombo, que possuam vínculo de parentesco com o grupo, e que sejam reconhecidos pela comunidade enquanto tal.
No caso dos indígenas, os critérios são os mesmos, necessitando de comprovação via certidão emitida pela Fundação Nacional do Índio (Funai).
Uma vaga para segmentos sociais historicamente marginalizados ocupada indevidamente por quem fraude informações é uma derrota cidadã, tanto para as comunidades negras, quilombolas ou indígenas, quanto pra toda a sociedade brasileira.
Fraudar uma vaga indígena ou quilombola é uma das práticas desse racismo brasileiro que se reinventa em tempos de ações afirmativas.
O controle social é a maior garantia da democracia, é cidadania ativa. E qualquer cidadão pode requerer junto às instituições as informações necessárias para esse controle.
O Pré-Vestibular Quilombola e o Conselho das Associações Quilombolas do Território de Vitória da Conquista têm atuado em parceria na mobilização e preparação em mais de 163 aprovações quilombolas nas instituições públicas da região (145 na UESB, 12 na UFBA e 6 na UEFS).
Concomitantemente, temos acompanhado e investigado denúncias de fraudes envolvendo acesso a cartas de autoreconhecimento de comunidades quilombolas e indígenas de outros territórios, tanto na UESB, quanto na UFBA, sempre em cursos de alta demanda, como Direito, Engenharias, Odonto e Medicina. No caso da UESB, o Programa prevê um comitê gestor com vaga de representação da sociedade civil. Atualmente, o comitê está desativado.
Em Vitória da Conquista, temos ainda o Conselho Municipal de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (COMPIR) órgão paritário que também pode ser acionado para que seja garantida a justa ocupação das vagas adicionais.
No vestibular de 2014, conseguimos denunciar junto à UESB dois casos de irregularidades. Na UFBA, os indícios estão em torno da Medicina. Ambas as instituições estão empenhadas na investigação e apuração dos casos, até porque quilombolas que ficaram em segundo lugar poderão vir a ocupar suas vagas.
Por isso que acredito que, tendo conquistado os marcos legais enquanto um grande passo na história das relações étnico-raciais no Brasil, agora, urge nos organizarmos para a sua efetivação, com transparência.
Flávio Passos é militante negro, coordenador do Pré-Vestibular Quilombola na Prefeitura Municipal de Vitória da Conquista e integrante da Coordenação do Conselho Municipal de Promoção da Igualdade Racial. Contatos: br2_ebano@yahoo.com.br.