Comissão especial visita o Sapê do Norte por soberania alimentar
A Comissão Especial "Direito Humano à Alimentação Adequada" está realizando, nesta terça-feira (26), uma missão in locu na região quilombola do antigo território do Sapê do Norte, que compreende os municípios de São Mateus e Conceição da Barra. Sapê do Norte agrupa 39 comunidades quilombolas e é localizado no extremo norte do Espírito Santo. A Comissão Especial Direito Humano à Alimentação Adequada está ligada à Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República e é formada por representantes de todo o país.
O representante da Defensoria Pública Federal que integra a comissão, Claudionor Leitão, confirmou em reunião que antecedeu a visita, nessa segunda-feira (25), a denúncia de uma situação permanente de insegurança alimentar e nutricional nas comunidades quilombolas, agravada pelo extensivo cultivo do eucalipto na região.
Uma visita já havia sido feita na região em 2008, pela Comissão Especial de Monitoramento de Violações ao Direito Humano à Alimentação Adequada (DHAA), ligada ao Conselho de Defesa da Pessoa Humana. A visita foi motivada por documentos de denúncia produzidos na Escola Popular Quilombola de Educação Política e Ambiental, que identificava a devastação provocada pela monocultura de eucalipto da Aracruz Celulose (Fibria) como a principal causa do problema. A Escola Popular é um projeto da Federação de Órgãos para Assistência Social e Educacional (Fase) do Espírito Santo em parceria com a Comissão Quilombola do Sapê do Norte.
Em 2009, essa comissão constatou que as plantações de eucalipto estão diminuindo a quantidade de água disponível e que os quilombolas entrevistados têm medo de consumir a água, devido à contaminação por agrotóxicos. Além de sofrerem violação ao direito à alimentação adequada, os quilombolas estão submetidos à violação do direito à terra e ao território; do direito à água; e do direito humano ao acesso à Justiça e ao tratamento igualitário perante a Justiça.
O documento destaca que os quilombolas dos municípios de São Mateus e Conceição da Barra “estão submetidos a diferentes e sistemáticas violações de direitos humanos. Essas violações são produzidas pela conjugação entre atuação e especialmente omissão de diferentes agentes estatais, no âmbito dos três níveis de poder, em suas três esferas, constituindo-se em impeditivos a uma vida com dignidade das comunidades quilombolas”.
No ano passado, a comissão voltou a se reunir para avaliar os desdobramentos das denúncias relativas à insegurança alimentar dos quilombolas. A representante da Comissão Quilombola do Sapê do Norte não conseguiu chegar a Brasília, mas foi possível analisar brevemente o quadro de respostas dos órgãos públicos aos ofícios enviados pela Comissão de Direito Humano à Alimentação, cobrando o cumprimento dos acordos estabelecidos em audiência pública de 2010, em Conceição da Barra, organizada pelos Ministérios Públicos Federal e Estadual. Os retrocessos na titulação de comunidades que já estavam em processo mais avançado – inclusive com a declaração de nulidade em certos casos – chamaram a atenção dos membros da comissão, que devem tomar providências, como relatou à época Vanessa Schottz, do Programa Nacional de Agroecologia, Segurança Alimentar e Economia Solidária da Fase.
Levantamentos
No começo deste mês, a Fase-ES fez um estudo sobre as condições de segurança e soberania alimentar de comunidades quilombolas da região do Sapê do Norte. Neste estudo, foi apontado que a monocultura extensiva de eucalipto, responsabilidade exclusiva da Aracruz, é a principal causa da perda das condições nutricionais e da erosão cultural das famílias quilombolas e pelos impactos à saúde, principalmente por conta do uso de agrotóxicos e do empobrecimento da terra de cultivo; e mudanças no regime alimentar e na cultura tradicional desse povo. A falta de água limpa e solo fértil também prejudica a subsistência dessas comunidades.
No estudo, foi constatado que as novas gerações de quilombolas têm uma variedade alimentar bem menos diversa do que aquela rica e variada da qual dispunham os quilombolas mais velhos quando crianças. A Fase apontou que "a variedade alimentar está aos poucos se perdendo, em troca de uma uniformização industrial da dieta de todos". Devido à dificuldade para produzir seus próprios alimentos, os quilombolas são obrigados a recorrer aos supermercados, nos quais, devido à pouca renda, podem comprar pouco e nem sempre o que há de melhor qualidade. Dessa forma, as crianças passam a não compartilhar da mesma cultura alimentar de seus antepassados. Uma solução emergencial foi criada pelo governo federal, que distribui cestas básicas. Mas isso acontece em apenas sete das 39 comunidades quilombolas da região, o que, segundo a Fase, configura "uma violação do direito de todas à alimentação".
A Fase ressalta ainda que a Aracruz vem, desde 1960, ano em que se instalou no Estado, devastando grande parte da Mata Atlântica, expulsando comunidades rurais tradicionais de suas terras e enchendo o território de eucalipto. A monocultura dessa planta compromete os estoques de água existentes no solo e os agrotóxicos usados nesse tipo de exploração contaminam os recursos hídricos e a terra. Só para se ter uma ideia do impacto da Aracruz nessa região, até os anos 70, 12 mil famílias quilombolas habitavam comunidades rurais. Atualmente, a Comissão Quilombola do Sapê do Norte calcula 1.500 famílias existentes.
Mesmo com essa invasão agressiva, os quilombolas mantêm estratégias de resistência na região. Iniciativas como os quintais produtivos agroecológicos e o trabalho de resgate de variedades de sementes e mudas, que vêm sendo feito em conjunto pela Fase e a Comissão Quilombola do Sapê do Norte capixaba, são exemplos disso.
Beiju
O evento anual que marca a luta quilombola pela recuperação do território explorado pela Aracruz, o 10º Festival do Beiju, foi realizado nesse final de semana na comunidade quilombola de São Domingos, uma das que compõem o Sapê do Norte. Missa dos Quilombos, apresentações de grupos folclóricos, com reis de boi e jongo; oficinas de capoeira, artesanato e trança marcaram os dias do festival, que também deve discussão política.
Sob o lema “Terra titulada, meio ambiente preservado”, foram feitas discussões em torno da retomada do território quilombola. Elda Maria dos Santos, uma das lideranças quilombolas da região, mais conhecida como Miúda, falou sobre o impacto da chegada do eucalipto no norte do Estado. “A miséria chegou em nosso meio. Muitos negros perderam suas terras e foram para a cidade, onde viveram mais miséria, foram marginalizados, trancados nas cadeias”.
Diversos outros representantes do movimento negro e dos poderes públicos, como o Ministério Público Federal, além da Coordenação de Povos Indígenas e Comunidades Tradicionais da Secretaria Meio Ambiente de Pernambuco e da gerência de Políticas Publicas para Mulheres da Casa Civil do Espírito Santo, participaram dos debates.