Consciência Negra
De Luta marajoara a futebol. O dia da Consciência Negra, celebrado no Brasil em 20 de novembro, é comemorado pelas comunidades remanescentes de quilombos de Salvaterra, na Ilha do Marajó, com os Jogos Quilombolas. Homens, mulheres, crianças e idosos… todos participam.
O universo complexo das comunidades remanescentes de quilombos é retratado com toda a sua força e intensidade em quatro dias de festa nas terras marajoaras. Toda a riqueza cultural e a história de lutas, que data desde a formação dos quilombos no período colonial, até os dias atuais, com a busca pela garantia de seus direitos estabelecidos pela Constituição de 1988, estão marcadas nas letras das músicas, em esportes, como a luta marajoara, e na dança do lundu e do carimbó.
Há 10 anos, pela iniciativa de algumas lideranças locais, as mais antigas, pequenos grupos das comunidades se reuniam para refletir sobre sua identidade negra e quilombola e se fortalecerem na luta pelo reconhecimento étnico. A ideia ganhou outras proporções, e de um pequeno seminário realizado na sede municipal de Salvaterra, torneios esportivos, dança, música e festa passaram a fazer parte da programação.
Raimundo Hilário de Moraes, quilombola da comunidade de Caldeirão, é um dos idealizadores dos jogos. Para ele, a participação de todas as 15 comunidades que compõe o território de Salvaterra, revela a capacidade organizativa dos quilombolas. Segundo Hilário, “tudo foi ficando grande. Começamos pequenos, e agora já vêm pessoas de outros municípios. Não tínhamos o apoio de ninguém, e agora até a prefeitura nos ajuda. Isso mostra a nossa força e nos fortalece ainda mais para enfrentarmos os desafios e as dificuldades de nossas comunidades. A Semana da Consciência Negra, em que lembramos a figura de Zumbi de Palmares, nosso guerreiro, também nos faz firmes como quilombolas”.
A cada ano, a programação é realizada em uma comunidade diferente. Em 2012, na comunidade de Pau Furado, quilombolas de outros municípios, como Cachoeira do Arari e Curralinho, já participaram. Este ano, na décima edição dos Jogos, que acontecem de 14 a17 deste mês na comunidade de Siricari, cerca de 500 pessoas participam.
Tudo é construído e executado coletivamente, conforme o costume quilombola, e o trabalho é organizado em comissões: de alimentação, de divulgação, de infraestrutura, além de uma coordenação geral, que rege toda essa movimentação. Cada canto da comunidade é preparado: o barracão é decorado para os grandes momentos, como abertura, encerramento, premiações; os alojamentos, muitas vezes de madeira e palha, são construídos para abrigarem os participantes; a alimentação é preparada pelas mãos das grandes cozinheiras, já conhecidas por todos. E tem muita música! A Banda de fanfarra de Caldeirão, o grupo Enita Angelim, de Salvaterra, os grupos de carimbo de Pau Furado, Bacabal e Bairro Alto embalam as noites culturais.
Uma das atrações mais esperadas, e que foi sendo aperfeiçoada ao longo dos anos, é o concurso da Beleza Negra. “A disputa começou com a categoria juvenil. Mas, aí, as senhoras de meia idade e até as da terceira idade, também queriam participar. E hoje, temos a miss mirim, a juvenil, da meia idade e a da terceira idade”, ressalta Hilário.
Nos jogos, propriamente ditos, homens e mulheres, representando as suas respectivas comunidades, disputam modalidades esportivas que fazem parte do cotidiano. A canoagem, que no dia-a-dia se coloca como forma de locomoção para muitos quilombolas, se transforma em esporte na Semana da Consciência Negra. Outros jogos também acirram a disputa dos atletas quilombolas, como, a prova do mergulho, a corrida rústica de 100 metros, o futebol, o vôlei, o cabo de guerra, a luta marajoara, e a corrida de búfalo. Jaqueline Alcântara da Conceição, da comunidade de Bacabal, está na organização dos Jogos desde a sua primeira edição e ressalta: “antigamente, as comunidades se encontravam nos quilombos por meio dos jogos e das festas religiosas, os círios… todos se confraternizavam assim. Então para nós era importante retomar esse costume. Por isso ampliamos e fomos realizar tudo dentro das comunidades”.
O Contexto socioterritorial
As comunidades quilombolas, como povos tradicionais, se caracterizam pela organização coletiva, fundamentada em sentimentos de pertencimento, laços de parentesco e, em especial, pelas diferentes formas de apropriação do território, onde os laços de solidariedade e a relação com os recursos naturais são determinantes.
Os jogos quilombolas do Marajó representam uma forma de superação frente às várias formas de expropriação impostas às comunidades. As ameaças à reprodução física e cultural dos quilombolas, traduzidas nas cercas das fazendas, na monocultura do arroz, e na falta de políticas públicas reconhecedoras de sua diferença étnica, estão marcadas em cada passo dado em seus territórios.
A “beleza negra”, como os próprios quilombolas gostam de falar, vem superar as iniquidades e reforçar os laços. “Os jogos vieram para somar à nossa identidade. A cada ano ela vai se fortalecendo. E a gente quer mais. Vamos crescer ainda mais”, afirma Jaqueline.
O dia 20 de novembro
É o dia de morte de Zumbi dos Palmares, ícone da luta pela abolição do regime escravista no Brasil, marcado pela constituição do maior refúgio de escravos do país, o quilombo do Palmares. É um dia em que se destaca o processo de resistência protagonizado pelos grupos negros contra o preconceito.
Momentos como os Jogos quilombolas demonstram a constituição de um processo de afirmação de um sentido coletivo, da garantia de reprodução social, e da busca por justiça a partir da existência, entre outros fatores, de um sentimento de solidariedade que contribui para a força de suas mobilizações políticas em busca de direitos étnicos, sociais e territoriais.