Na Bahia, quilombolas travam a batalha do Rio dos Macacos
Simões Filho "Daqui só saio se for morto, pois foi onde nasci e passei toda a minha vida. Foi aqui também que nasceu, cresceu e morreu o meu pai, aos 99 anos. Nunca pensei que tivesse que provar tanta perseguição e injustiça na vida. Nessa área, a escravidão não acabou, tomou apenas uma forma diferente do que era no passado". O depoimento é do quilombola José Catarino dos Santos de Araújo, 61. Ele é um dos ocupantes da região chamada de Rio dos Macacos, localizada no limite das cidades de Simões Filho e Salvador, no Estado da Bahia.
No local acontece uma disputa por terra entre a Marinha e os quilombolas. Por conta do conflito, o acesso, por meio da Vila Naval da Barragem, é restrito. Só é permitida a entrada de quem é cadastrado. Para checar as denúncias de desrespeito aos direitos humanos, a reportagem subiu até o morro do Rio dos Macacos por meio de um caminho alternativo usado pelos quilombolas, considerado "ilegal", onde não existe o monitoramento de 24 horas realizado pela Guarda Naval.
Parte da área é cercada de arame farpado. Para os moradores, é uma forma de intimidação e de acuá-los cada vez mais. "Eles (os guardas da Marinha) dizem que é para nos proteger. Não precisamos disso. Embora eles possam pensar, não somos bichos para viver cercados", desabafa Nivaldo dos Santos, 36. "Vivemos atormentados. Lá na portaria eles têm uma relação. Se um parente ou amigo que não tiver o nome incluído quiser nos visitar tem que voltar, a não ser que a gente desça e vá recebê-lo pessoalmente", acrescenta Nivaldo com tristeza.
Seu Catarino, que se aposentou por invalidez há 14 anos após cair de um cavalo, reforça a informação e relata que o filho mais velho, chamado Sabino, desistiu de visitá-lo após ser barrado várias vezes. "Quem quiser chegar até aqui tem que pegar o atalho pelo qual vocês da reportagem vieram. É muito perigoso, pois tem muitos desocupados e ladrões nessa região. Além do mais, tem que ter sorte e reza forte, pois, se a guarda pegar, bota para descer".
Facão
O quilombola é conhecido por todos pelo fato de nunca se separar de seu facão. "A gente não pode fechar o olho. Aqui não tem qualquer segurança. O facão é a defesa da minha família. Além das perseguições da Marinha, temos que nos preocupar com os invasores". No seu barraco não tem água encanada, saneamento e a energia é puxada por meio do que se convencionou chamar de gato. "A Marinha diz que estou roubando energia elétrica. Como, se ela nunca me deu o direito de pedir uma ligação normal? E o governo não diz que tem o Luz para Todos ?"
Dona Maria da Conceição, 51, esposa de seu Severino, diz que as humilhações são constantes. "Certa vez, não me deixaram entrar. Disseram para eu ir pelo lamaçal. Não tive outra alternativa. Só que pela estrada de barro o perigo é constante. O que não entendo é que os ´naval´ só sobem aqui para perseguir a gente. Deveriam vir prender os bandidos que vêm roubar minhas galinhas". Outra queixa do casal é o impedimento para que construam um banheiro. "A gente tem que correr no rumo do mato para fazer as necessidades. Tentamos levantar um banheiro, mas eles embargaram".
Subindo mais o morro, encontramos o que restou da moradia de José de Araújo dos Santos, o seu Zezinho. Uma forte chuva que caiu há quase 18 meses derrubou parte do casebre. Ao tentar soerguê-lo, foi impedido pela Guarda Naval, gerando um conflito. Segundo os moradores da região, um dos filhos de seu Zezinho tinha sido mordido por uma cobra. Depois desse episódio, a família abandonou o local e foi para a casa de parentes.
Situação mais desoladora é a da quilombola Crispiniana Evangelista dos Santos, 41. Num barraco de taipa de pouco mais de 20 metros quadrados, ela divide seu martírio com dez filhos menores. "É sofrimento que não acaba mais, seu moço. Nasci e me criei aqui com os meus pais. Na época, a perseguição não era como hoje. Não existia a Marinha", conta, ao se referir à construção da Vila Naval, nos anos 70 do século passado.
Aos prantos, ela relata que, "há um ano, os ´navais´ estiveram por aqui e ameaçaram derrubar meu barraco com criança e tudo dentro. Há quatro anos, estamos impedidos de plantar até mesmo uma pequena rocinha. Vivo com R$ 200 que o meu ex-companheiro me dá por mês e com a ajuda do pessoal da comunidade. Do contrário, já tinha morrido de fome".
Dona Crispiniana não recebe o Bolsa Família ou qualquer outro tipo de auxílio governamental. Até a esperança já perdeu. "Não espero nada mais de bom. Se existe alguma esperança é em relação aos meus filhos. Peço que Deus dê uma vida mais decente para eles. Somos tratados como bandidos. Não invadimos nada. Quando os ´navais´ chegaram por aqui, nós já estávamos há muito tempo".
Marinha
Já em Fortaleza, através de e-mail, enumeramos todas as denúncias que foram feitas sobre desrespeito aos direitos humanos e solicitamos a versão do Comando do Segundo Distrito Naval. A Assessoria de Imprensa informou que a posição oficial sobre o impasse no Rio dos Macacos foi emitida no dia 13 de junho de 2012, por meio de documento oficial. Conforme a nota, "o terreno em questão, onde atualmente residem irregularmente os moradores da denominada "Comunidade Rio dos Macacos", é de propriedade da União, estando sob a administração da Marinha. Essa área foi desapropriada na década de 50, mediante justa e prévia indenização, estando consignado no processo que a empresa expropriada detinha a sua posse mansa e pacífica, sem contestação nem oposição de ninguém".
Destaca ainda: "Em novembro de 2009, foi proposta Ação Reivindicatória pela Procuradoria da União na Bahia, objetivando a reintegração de posse do terreno, em face de ocupações não consentidas pela União, que se instalaram paulatinamente no entorno da barragem".
Sobre o barraco de seu Zezinho, a Marinha alega que "em 31 de maio de 2012, foi proferida decisão judicial determinando a paralisação de qualquer construção, reforma ou modificação dos imóveis incluídos na demanda reivindicatória, a fim de preservar o estado anterior da coisa, tendo o juiz requisitado força das polícias Federal e Militar para o imediato cumprimento da decisão, uma vez que não compete à Marinha do Brasil fazê-lo. "O tratamento dispensado aos moradores sempre foi respeitoso e humano, e todas as denúncias de conflitos envolvendo militares foram devidamente apuradas, não tendo sido encontrado qualquer indício que confirmasse a veracidade das acusações".
Conseguir água para beber vira martírio
Para conseguir água de beber e cozinhar, dona Crispiniana recorre a uma maneira sui generis. Todos os dias, acorda às 5 horas da madrugada e leva cerca de 100 garrafas PET para apanhar o líquido numa fonte que fica próxima à sua casa. Às vezes, porém, tem que ir ao rio que dá nome à comunidade, que dista cerca de dois quilômetros do local. "Quando tem alguma coisa para a gente colocar em cima, tipo um carrinho, até que o sacrifício não é tão grande. Mas, nem sempre isso é possível. Aí, o jeito é colocar mesmo na cabeça e trazer".
Degradação
Seu barraco de taipa é o retrato da degradação humana. Possui apenas dois compartimentos. O piso, na verdade, é o próprio solo, o que facilita o aparecimento de cobras e escorpiões. O banheiro é ao relento. O chamado programa Luz para Todos ali não chegou. A quilombola mostra as velas que usa todas as noites.
"O que me dói mais no coração é que esse pessoal que quer nos expulsar diz que todos os problemas podem ser resolvidos. Basta eu ir embora daqui". Uma das filhas de dona Crispiniana, Josilene Moreira, 11, afirma que já foi barrada várias vezes ao retornar da escola. "Tenho que chamar a minha mãe para poder subir. É muito chato. Queria poder entrar normalmente, como as pessoas que moram lá na vila", apela Josilene.
A jovem pode ficar sem completar o ano letivo. "A escola está exigindo que ela use calça comprida e uma camisa branca. Não tenho condição de comprar isso. Como exigem uma coisa dessa de quem já passa por tantas dificuldades", desabafa dona Crispiniana. A presidente da Associação dos Remanescentes do Quilombo Rio dos Macacos, Rosimeire dos Santos Silva, afirma que as humilhações e ameaças não param. "No dia 13 de 2012, um guarda da Marinha ameaçou um dos nossos moradores mais antigos, o seu Antônio Alexandrino dos Santos. Na madrugada do dia seguinte, ele teve um derrame. Ficou internado no hospital e, quatro dias depois, morreu".
Conforme Rosimeire, esse foi apenas um episódio de desrespeito aos direitos humanos. "Ficamos todos de luto e chocados, mas não surpresos. Há alguns anos, uma moradora, chamada Maria São Pedro, estava sentindo as dores do parto. A Marinha não deixou a ambulância subir. Ela tentou descer com a ajuda de outras pessoas. A criança nasceu ali mesmo, no meio da lama. Bateu a cabeça no chão e morreu. De nada adianta a gente denunciar. Nossa palavra não é ouvida. A Polícia não leva as denúncias adiante, pois não vai mexer com a Marinha".
Centenárias
Dentre os cerca de 400 moradores da comunidade Morro dos Macacos, duas irmãs centenárias, ambas filhas de escravos, chamam a atenção: Maurícia Maria de Jesus, 112, e Luiza da Conceição, 101.
Dona Maurícia reclama das perseguições e diz apenas: "gostaria de viver em paz o resto da vida que tenho pela frente. Espero que não tenha que ver o nosso povo ser expulso daqui".
Ao descer do morro, onde se localiza a comunidade Rio dos Macacos, a reportagem foi checar se realmente o acesso à imprensa, conforme denunciado, era vetado. Na guarita de segurança, fomos parados. O guarda do plantão nos colocou em contato telefônico com um oficial que nos disse que não podíamos entrar. Segundo ele, o jornal teria que enviar um ofício com antecedência explicando os motivos da visita para que o mesmo fosse analisado e só depois seria permitida ou não a nossa entrada.
No mesmo lugar desde a época da escravidão
Alcântara (MA) No Brasil, existem três conflitos envolvendo as Forças Armadas e quilombolas. Em dois deles, em Marambaia, no Rio de Janeiro, e em Simões Filho, na Bahia, a disputa é com a Marinha. O outro é em Alcântara, no Maranhão, com a Aeronáutica, que desenvolve ali um projeto espacial, fruto de parceria entre Brasil e Ucrânia, por meio da binacional Alcântara Cyclone Space (ACS). Enquanto persistir o impasse, o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) não emite os títulos de propriedade da terra para os quilombolas.
"Temos aqui um projeto de implantação da Base Espacial, que, em 1986, deslocou compulsoriamente 32 quilombos do litoral de Alcântara para uma região central, num total de 312 famílias. De 2000 para cá, criamos o movimento dos atingidos pela Base Espacial, com o objetivo de cobrarmos dos governos o pleno direito de exercer a cidadania", afirma Sérvulo de Jesus Moraes Borges, militante quilombola.
Ele esclarece que, no momento, "a luta maior é pela titulação desses territórios. Há o problema dos decretos que desapropriaram parte dessas terras para implantação do Centro de Lançamento. Só que depois de muito diálogo, discussão e de muita luta judicial, o governo brasileiro recuou no tamanho do território que eles queriam para a implantação dessa Base".
Existem na área 106 comunidades quilombolas, das quais apenas três possuem os territórios certificados pela Fundação Cultural Palmares. No total são 3.554 famílias, o que representa cerca de 17 mil pessoas. "Há uma ação civil pública na qual lutamos com todos os quilombos para criarmos a organização jurídica que vai receber esse título. A titulação dos quilombos é coletiva. Nós temos o uso comum da terra e queremos o título coletivo. Nossa presença é da época da chegada dos negros escravizados por aqui".
O militante lembra que as "transferências começaram em 1982 e seguiram até 1988, quando foram feitos os deslocamentos. O resultado é que, hoje, tudo aquilo que se vê nas agrovilas é um aglomerado de pessoas que se procura e não se acha a identidade. A realidade é que nunca houve titulação. Eles foram retirados de suas terras e cada família recebeu entre 14 e 16 hectares. Só que isso nunca foi regulamentado. Precisamos encontrar uma forma de dialogar. Existe uma perda grande em tentar implantar um projeto de magnitude científica tão grande sem atentar de que mexeria com vidas humanas".
O diretor do Departamento de Proteção ao Patrimônio Afro-Brasileiro da Fundação Cultural Palmares, Alexandro Reis, entende que, em Alcântara, a questão já apresentou soluções: "Em 2008, foi feito um acordo de demarcação de uma área de 78 mil hectares, em favor dos quilombolas, embora exista um pedido de revisão por parte da Aeronáutica para aumentar o espaço do Centro de Lançamento".
FERNANDO MAIA
REPÓRTER