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Comunidade quilombola de Morro Alto aguarda titulação de terras

A comunidade quilombola de Morro Alto, no interior do município gaúcho de Osório, aguarda há pelo menos nove anos um desfecho para o processo de titulação das suas terras, que tramita desde 2004 na superintendência do INCRA no Rio Grande do Sul. Com 4,3 mil hectares e quase 500 famílias beneficiadas, Morro Alto representa a maior comunidade quilombola do estado.

No total, o Rio Grande do Sul possui 78 processos de titulação de terras quilombolas em estudo no INCRA e somente três comunidades oficialmente instaladas em seus territórios de origem: Casca, no município de Mostardas, onde 78 famílias vivem em 2.378 hectares; Família Silva, em Porto Alegre, onde 13 famílias vivem em 0,65 hectares; e Chácara das Rosas, em Canoas, onde 20 famílias moram em 0,36 hectares.

O processo de titulação de Morro Alto acabou sendo judicializado. Em outubro do ano passado, a FETAG solicitou que o INCRA refizesse todo o processo de demarcação territorial. Do outro lado, a comunidade pressiona para que o instituto realize o procedimento de notificação da população que atualmente reside no território original dos descendentes de escravos. O INCRA se comprometeu em cumprir essa determinação legal até março deste ano.

O advogado da Frente Nacional de Defesa dos Territórios Quilombolas, Onir de Araújo, que assessora juridicamente a comunidade de Morro Alto, acusa o INCRA de estar adotando “uma postura de racismo institucional”. “O instituto se recusa a cumprir sua própria norma. O retardo das notificações é ilegal e ocorre por pressões de setores ligados a interesses econômicos e ao governo federal”, critica o advogado.

Araújo informa que o relatório técnico de identificação do território quilombola, elaborado pelo INCRA, foi publicado em março de 2011 no Diário Oficial da União. A partir daí, o próximo passo, que ainda não ocorreu, é a notificação da população não quilombola que reside no local.

Após essa notificação, os moradores têm até 90 dias para contestar o relatório técnico do INCRA, que pode acolher ou não a contestação. Em seguida, o instituto remete o processo para seu escritório central, em Brasília. Após essa análise, o processo vai para a Casa Civil da Presidência da República, que tem o poder de publicar o decreto de desapropriação total do terreno.

Com a publicação desse decreto, são ajuizadas as ações de desintrusão. Os moradores locais que tiverem títulos de propriedade podem ser indenizados pelo valor de mercado de suas terras, em dinheiro e à vista. E os que não tiverem documentação comprovando a posse da terra podem ser reassentados em outros lotes.

Porém, nada disso aconteceu ainda em Morro Alto, porque o INCRA ainda não realizou a notificação da população não quilombola residente no território. O advogado conta que a demora na titulação está aumentando as tensões na convivência entre quilombolas e a população que atualmente reside na região. “Se criou uma situação de total intranquilidade, com perseguição e desqualificação dos quilombolas. O grau de tensão está exacerbado, expondo a comunidade a uma série de situações complicadas”, explica.

Araújo considera que há uma “campanha de terrorismo” por parte de políticos contrários aos quilombolas, que estariam afirmando que a população branca seria expulsa do território sem nenhuma garantia. “Ninguém irá sair de lá da noite para o dia, com uma mão na frente e outra atrás. Isso é balela, é terrorismo. Qualquer pessoa que não seja ingênua ou de ma fé entende isso”, assegura.

Os opositores à criação do quilombo afirmam que mais de 900 famílias de produtores rurais habitam a região e que os moradores estariam sendo intimidados pelos quilombolas, que estariam percorrendo o território para escolher quais residências irão habitar. Essas declarações foram feitas ao deputado estadual Gilberto Capoani (PMDB), que coordenou uma comissão da Assembleia Legislativa que debateu a titulação de terras a indígenas e quilombolas no estado.

Entretanto, em conversa com o Sul21 em outubro do ano passado, o superintendente do INCRA no Rio Grande do Sul, Roberto Ramos, informou que moram cerca de 500 famílias de “proprietários, posseiros e chacreiros devidamente identificados” na região.

“Acham que ainda somos escravos”, critica líder quilombola de Morro Alto

Quando um território é concedido pelo Estado brasileiro a uma comunidade quilombola, ele não é qualificado como uma propriedade privada. O título de reconhecimento é emitido para uma associação formada pela comunidade, ao invés de ficar sob a guarda de uma pessoa física.

No caso de Morro Alto, é a Associação Quilombola Rosa Osório Marques que articula os interesses da comunidade. O presidente da entidade, Wilson Marques da Rosa, critica fortemente a lentidão do processo de titulação no INCRA.

“Estamos aguardando as notificações. O INCRA só enrola, pois está comprado pelos fazendeiros”, argumenta. Ele também critica o superintendente do instituto no Rio Grande do Sul, Roberto Ramos – petista ligado à corrente Democracia Socialista. “A DS tem que passar a se chamar DC: Democracia Capitalista. Faz 12 anos que o INCRA está com esse grupo e essas questões não avançam”, acusa.

Wilson acusa os produtores rurais da região de estarem tentando subornar a população quilombola, oferecendo dinheiro para que abandonem as terras. “Tentaram me comprar e estão indo de casa em casa. Me perguntaram quanto eu quero para parar com essa história de quilombo. Eu respondi que isso não é um negócio, é um direito. É uma área que sempre foi nossa e que os grileiros tomaram. Não tem dinheiro que pague o que nós queremos”, defende.

O presidente da associação diz que os descendentes de escravos ainda sofrem com o preconceito da população não quilombola que morra no local. “Tentam nos desorganizar, nos ameaçam de morte. Antigamente, negro não era tido como gente. Hoje, existe um racismo velado. Quando saem de perto da gente, dizem que estamos fedendo. Acham que ainda somos escravos”, lamenta.

Wilson Marques da Rosa assegura que o território originalmente ocupado por escravos e seus descendentes na região é maior do que o que está sendo estudado pelo INCRA. “Minha avó falava em 3,5 sesmarias de terra. Era praticamente 48 mil hectares, uma área que abrangia dez municípios. Os escravos fugiam de Porto Alegre e, com a ajuda dos índios, vinham para essa região”, comenta.

Sem o direito de ocupar plenamente seu território original, os quilombolas estão espalhados por três núcleos em Morro Alto e muitos deles precisam fazer bicos para sobreviver. “Tem muito pouco espaço para plantarmos. No verão, o pessoal vai para as praias trabalhar no corte de grama, na cozinha, na faxina”, diz Wilson.

O advogado da comunidade, Onir de Araújo, explica que esse é o quadro geral dos quilombolas no país. “Até pouco tempo, tinha cordas separando quilombolas e brancos nos bailes. Os quilombolas estão tendo que plantar milho em cima de pedra. O gado que possuem para subsistência fica na beira da estrada. Por não terem seu território para produzir, muitas vezes precisam se submeter a trabalhar para seus algozes”, comenta.

“As elites brancas terão que se conformar”, diz antropólogo

Doutor em Antropologia, José Otávio Catafesto de Souza lembra que a garantia de direitos a quilombolas no país ainda é bastante recente, do ponto de vista institucional. “O reconhecimento dos direitos quilombolas ocorreu com a Constituição de 1988, mas o Brasil possui séculos de relações pautadas pela marginalização dessas comunidades. Esses direitos são uma tentativa de se modificar relações estruturais que configuram a origem e a formação da sociedade brasileira”, explica o professor da UFRGS, que também é coordenador do Laboratório de Arqueologia e Etnologia do Departamento de Antropologia da universidade.

O professor observa que os escravos e seus descendentes – organizados em quilombos – “tiveram suas terras invadidas e usurpadas por brancos”. Para o antropólogo, os brancos resistem em devolver esses territórios porque “significaria a perda de currais de mão de obra que ficam à disposição”. “O que está em jogo é o fato de que as elites brancas terão que se conformar com o fato de que os negros, que antes trabalhavam por quase nada, agora estão recebendo terras”, analisa.

Catafesto explica que pressões políticas estão barrando a titulação do quilombo de Morro Alto. “A base de articulação contra a comunidade de Morro Alto vem de partidos que sustentam a coligação da Presidência da República. O PMDB tem quadros daquela região, como os deputados Alceu Moreira e Eliseu Padilha. Eles conseguem segurar o avanço dessas questões em Brasília”, critica.

O professor diz que há interesses econômicos no território. “Há grande interesse nas jazidas naturais de mineração em Morro Alto. Para disfarçar isso, as forças econômicas colocaram uma série de pequenos colonos na região. Criaram um impasse político, pois os pequenos agricultores também dão sustentação ao governo federal”, avalia Catafesto.

Na opinião do acadêmico, as pressões do principal aliado político – o PMDB – e a possibilidade de se desentender com pequenos produtores fazem com que o Palácio do Planalto não dê continuidade à titulação do quilombo de Morro Alto.

 

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