Artesã alagoana transforma tragédia das enchentes de 2010 em arte
Mais que retratar os anseios do artista, a obra de arte é um reflexo da realidade. A artesã Irinéia Nunes exemplifica bem isso. Patrimônio Vivo de Alagoas, ela transformou um dos episódios mais marcantes ocorridos durante as enchentes de 2010 em um trabalho rico em detalhes, feito em barro, e que tem chamado a atenção de pessoas de todo o País.
Era final de tarde do dia 18 de junho de 2010, quando a água que vinha do Rio Mundaú começou a invadir a Comunidade Quilombola de Muquém, localizada no município de União dos Palmares, terra de Zumbi. Alguns moradores conseguiram sair a tempo de casa e se refugiar na parte mais alta do povoado, onde a água não conseguia chegar, mas muita gente só se deu conta do perigo que corria depois que não havia mais tempo para deixar o local. Foi então que eles tiveram a ideia de se refugiar em duas jaqueiras, que acabaram salvando a vida de 52 descendentes de quilombo.
Quase dois anos depois, os momentos de agonia vividos pelos moradores de Muquém continuam vivos na memória de cada um deles. São histórias que não acabam mais. Quem estava em uma das jaqueiras relata cada detalhe do que se passou entre as 17h30 daquela sexta-feira e as 4h do sábado, quando o nível da água começou a baixar e eles puderam, enfim, deixar os galhos das árvores.
Foram horas e horas expostos ao frio, ao medo e à incerteza. Momentos que agora estão transformados em obra de arte e foram eternizados pelas mãos da artesã Irinéia Nunes. Resultado de um dia inteiro de trabalho com as mãos no barro, a escultura retrata os quilombolas em cima dos galhos de uma das jaqueiras, trazendo detalhes que ajudam a contar a história ocorrida naquele dia, como uma mãe pendurada em um dos galhos segurando uma criança de dois anos.
“Jamais vamos esquecer o que aconteceu naquele dia. A água do rio já tinha subido e invadido algumas casas outras vezes, mas nunca daquele jeito. Depois do ocorrido eu fiquei com aquilo na cabeça, até que resolvi fazer esse trabalho. Primeiro eu faço a jaqueira, depois coloco as folhas e por último as pessoas. Tem vindo até gente de fora para comprar”, conta Irinéia Nunes.
Segundo ela, cerca de 30 peças que reproduzem o episódio envolvendo a jaqueira e os quilombolas já foram confeccionadas e vendidas ao preço de R$ 70 cada. E as encomendas não param de chegar. “Muitas pessoas têm vindo atrás da jaqueira”, ressaltou a artesã.
O aposentado Manoel Nunes, 67 anos, é um dos descendentes de quilombo salvos pelo pé de jaca. Ele conta que não sabe de onde veio a força para passar tantas horas pendurado em um galho de árvore e diz que naquele dia teve, pela primeira vez, medo de morrer. “Um filho meu já estava em cima da jaqueira e me chamou. Foi a minha salvação. A água estava subindo muito rápido e já passava da minha cintura quando cheguei à jaqueira. Jamais vou esquecer aquele dia, nem que eu viva duzentos anos”, lembra.
Árvores viraram ponto turístico
As jaqueiras, que acabaram virando ponto turístico de Muquém, ficam no quintal da dona de casa Aparecida Josefa Pereira, 46 anos, que teve três filhos salvos da enchente graças à árvore. “Eu me sinto muito orgulhosa de ser a dona das jaqueiras. Três filhos meus passaram a noite lá, foram os primeiros a subir. Depois que estavam lá em cima, eles começaram a chamar as outras pessoas. Eu nunca pensei que eles pudessem estar com vida depois da enchente. Achei que não ia encontrar ninguém vivo no outro dia. A nossa felicidade foi esse pé de jaca”, diz.
Depois do episódio, o quintal de Aparecida Pereira virou o mais novo roteiro turístico de Muquém, que por si só, pelo fato de ser uma comunidade quilombola, já atrai a atenção de muitos visitantes. “As pessoas chegam aqui e vão entrando para conhecer as jaqueiras, eu nem ligo mais. Já veio gente de todas as partes, inclusive muitos jornalistas”, ressalta a dona de casa orgulhosa.
Uma das jaqueiras, a maior delas, encontra-se hoje com dezenas de fitas coloridas de Padre Cícero amarradas em seus galhos e que foram colocadas, uma a uma, pelos guerreiros quilombolas que sobreviveram à enchente. Uma forma encontrada por eles para agradecer pela vida. “Eles vieram aqui, amarraram as fitinhas, acenderam velas e rezaram. Muita gente ainda chora ao ver o pé de jaca. Ele foi a salvação da nossa comunidade”, fala Aparecida Pereira.
<O Observatório Quilombola publica todas as informações que recebe, sem descartar ou privilegiar nenhuma fonte, e as reproduz na íntegra, não se responsabilizando pelo seu conteúdo>.