Povos indígenas lançam manifesto em audiência da Comissão de Direitos
Renato Santana
Audiência Pública da Comissão de Direitos Humanos do Senado, ocorrida na manhã desta quarta-feira (9) para tratar da Terra Indígena Maró (PA), foi o espaço escolhido por 75 organizações indígenas e indigenistas para o lançamento do manifesto contra as últimas medidas administrativas e políticas do governo Dilma Rousseff. As críticas são duras e a chamada do documento é: Perversidade e Autoritarismo: Governo Dilma edita portarias de restrição e desconstrução de direitos territoriais indígenas e quilombolas.
O momento, entretanto, é histórico: somadas, as organizações indígenas representam mais de 200 povos originários de todas as regiões do país que protestam contra as restrições “ao alcance dos direitos constitucionais dos povos indígenas e das comunidades quilombolas”, conforme texto do manifesto, motivadas pelas ações governamentais.
Depois que a bancada indígena esvaziou a Comissão Nacional de Política Indigenista (CNPI) e rompeu diálogo com o governo federal, até que a presidenta receba os indígenas – atitude que Dilma se nega a tomar, o manifesto cela a indignação e revolta dos povos que tomaram corpo em mobilizações por todo o país.
A sede da Fundação Nacional do Índio (Funai) em Imperatriz, município do Maranhão, está ocupada há mais de uma semana. Ocupações semelhantes ocorreram em Santa Catarina, Rio Grande do Sul e Mato Grosso do Sul. Nos últimos meses, mobilizações de protesto ocorreram em São Paulo, Paraná, Bahia e Pará.
Nas pautas, o não cumprimento dos direitos constitucionais indígenas. Caso mais recente foi a ocupação do canteiro de obras da Usina Hidrelétrica de Belo Monte, na região de Altamira (PA), por cerca de 600 integrantes de comunidades tradicionais. As comunidades indígenas, ribeirinhas e de pescadores não foram consultadas sobre o empreendimento, conforme exige a Constituição, entre outras violações.
Para o manifesto, a gota d água foi a publicação, no último dia 28, da Portaria Interministerial 419. Com ela, o governo federal busca regulamentar, ao arrepio da Constituição e respondendo aos interesses políticos de aliados, a atuação da Funai, da Fundação Cultural Palmares (FCP), do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN) e do Ministério da Saúde em pareceres aos processos de licenciamentos ambientais – tais como o de empreendimentos como o de Belo Monte.
Na Portaria Interministerial, no artigo 2º, fica estabelecido que o governo só irá considerar Terra Indígena aquela que tem seus limites estabelecidos pela Funai. Contraria assim o artigo 231 da Constituição ao restringir o conceito de Terra Indígena, mais amplo. Com apenas uma canetada, conforme o manifesto, ignora cerca de 346 terras indígenas reivindicadas pelos povos, mas que não tiveram procedimentos administrativos iniciados pela Funai.
Situação triste e calamitosa
“No assunto dessa audiência soma-se o desespero de todos os outros povos indígenas do país, tanto os que estão com suas terras demarcadas quanto os que não estão, por todo o fato que está presente na carta”, frisou Kleber Karipuna, representante da Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (Coiab), que fez a leitura do manifesto.
O indígena acrescentou que os povos vivem uma situação “triste e calamitosa” na área da saúde. A Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai) não atende as políticas de atenção aos indígenas. “As portarias do governo federal aprofundam a situação de abandono e vão de encontro aos nossos direitos, garantidos na Constituição, na Convenção 169”, disse Kleber.
Exigiu a revogação imediata da Portaria 419 e das demais que atentam contra as comunidades tradicionais – indígena e quilombola. “Não estamos sendo ouvidos e sequer considerados”,
A encenação democrática do governo, de acordo com o manifesto, “impõem limites à participação das comunidades nas discussões, debates e decisões a serem tomadas sobre os programas e empreendimentos econômicos que afetam direta ou indiretamente suas comunidades, terras, culturas, história e as suas perspectivas de futuro”.
Para Rosane Kaingang, da Articulação dos Povos Indígenas Brasileiros (Apib), as portarias e posturas da presidenta Dilma apenas asseguram a lucratividade aos empreendimentos das grandes corporações econômicas – com destaque para as empreiteiras.
“Quando o Estado brasileiro viola uma legislação e os nossos direitos, seja dos indígenas, quilombolas e as ditas ‘minorias’, vamos recorrer a quem? Porque essas portarias representam violências físicas, culturais, sociais e de direitos”, atacou Rosane. Entre lágrimas, ressaltou que até o momento a presidenta Dilma sequer sinalizou em receber o movimento indígena. “É doloroso porque o Estado está silencioso conosco. Como mulher indígena, digo à presidenta que repense o que está fazendo conosco e venha para o diálogo. Aliás, em 500 anos é isso que estamos fazendo. Estamos cansando de fazer documentos”, disse.
Vale do Javari e outras tragédias
“Alguém aqui pode dizer que se vive numa situação de dignidade humana quando tem que se humilhar para conseguir uma bolsa escola, uma bolsa família, uma cesta básica? É possível dizer que se tem dignidade para os indígenas quando eles não têm acesso à saúde? É uma realidade brasileira, amazônica, senador Paulo Paim (PT/RS e presidente da Comissão de Direitos Humanos)”, disse a senadora Marinor Brito (PSOL/PA).
A fala da senadora repercutiu entre os povos indígenas presentes – Apinajé, Tupinambá, Pataxó Hã-Hã-Hãe, Krahô, Tapuia, Karipuna, entre outros. No entanto, uma situação se destaca no cenário. No Vale do Javari, Amazônia, a morte espreita diariamente os povos indígenas que lá vivem: 85% dos índios estão infectados pelos vários tipos de hepatite e há denuncias de que quando os medicamentos chegam vencidos nas aldeias. As mortes são semanais, inclusive de crianças e adolescentes. Para enfrentar a situação, posto que o Estado não se faz presente, uma campanha nacional contra o extermínio dos povos do Vale do Javari está em curso.
“Queremos demonstrar para essa comissão a nossa preocupação e tornar pública a situação dos povos indígenas brasileiros. No nosso entendimento, a implementação do projeto de desenvolvimento na forma que está sendo implementado, mais do que colocar em risco as populações originárias está atingindo a democracia, enfraquecendo-a”, disse o secretário-executivo do Conselho Indigenista Missionário (Cimi) Cleber Buzato.
Para o missionário, trata-se de um Estado absolutista sob os marcos de uma ditadura do capital, onde as piores barbaridades são cometidas contra as populações originárias e o meio ambiente. “São atacados de forma cruel, perversa”, denunciou Cleber.
Ele destacou em sua fala três situações: a calamidade na área da saúde (com ênfase sobre a situação do Vale do Javari); situação dos indígenas que vivem em acampamentos no Rio Grande do Sul e Mato Grosso do Sul (ação de milícias contra os acampados) e a invasão de madeireiros e todo tipo de invasores – os povos indígenas do Maranhão, sobretudo os Awá-Guajá caçados por invasores dentro do Território Indígenas, e no Mato Grosso na Terra Indígena Marãiwatsédé do povo Xavante.
“São situações que o Estado não pode tolerar. Estamos falando, presidente, de indígenas sendo caçados em seus próprios espaços. A Comissão poderia fazer diligências, ir ver de perto. Nossos relatórios, baseados em idas a campo, apontam que até os povos isolados estão sendo atacados, conforme vestígios. Esses povos necessitam da ajuda desta Comissão”, pediu o secretário-executivo do Cimi.
A Comissão de Direitos Humanos dará destaque para os três pontos levantados e reuniões de trabalho serão agendadas. “Não podemos deixar nada disso cair no esquecimento”, encerrou o senador Paulo Paim.
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