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ISA apresenta os resultados do inventário do patrimônio cultural quilombola do Vale do Ribeira

Os resultados de quase dois anos de levantamento e sistematização dos bens culturais com a participação ativa de agentes culturais locais foram apresentados na última sexta-feira (14/10) e apontaram a necessidade de salvaguarda.

O seminário organizado pelo ISA em Iporanga reuniu mais 60 representantes quilombolas e instituições parceiras para apresentar os resultados do levantamento realizado em 16 quilombos. Encerrou-se, assim, o Projeto de Inventário de Referências Culturais de Comunidades Quilombolas do Vale do Ribeira. Além de compartilhar os resultados, o seminário discutiu ações futuras para proteção do patrimônio cultural. Participaram do evento o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), a Equipe de Articulação e Assessoria das Comunidades Negras do Vale do Ribeira (Eaacone) e o Centro Cultural de España en São Paulo (Aecid).

De manhã, a coordenadora técnica do projeto, Anna Maria Andrade, apresentou os resultados a partir de considerações teórico-metodológicas e processos. Os agentes culturais relataram suas experiências como pesquisadores do projeto, e destacaram a importância de alguns dos bens culturais de suas comunidades. Na avaliação de Ivo dos Santos, do Quilombo de Sapatu, a capacitação de agente cultural foi bastante importante. “Foi daí que eu conheci melhor minha própria comunidade. Aprendi muito com esse projeto.

A exibição do vídeo que foi sendo feito durante o período do inventário e que reúne imagens de bens culturais dos 16 quilombos foi o ponto alto do seminário: emocionados com a riqueza do patrimônio cultural exibido no filme, os quilombolas exaltaram a importância de suas tradições e lamentaram a perda de alguns bens que ocorrem em outras comunidades, mas não mais nas suas.

Os destaques do inventário

Foram mapeados 170 diferentes bens culturais e aplicados 530 questionários. Os bens culturais foram classificados nas 5 categorias previstas na metodologia do Inventário Nacional de Referências Culturais (INRC) do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), conforme descrito abaixo:

:: Na categoria dos Ofícios e Modos de Fazer estão os bens culturais que se relacionam com conhecimentos e práticas empregados em atividades do cotidiano, como o trabalho na roça e sua organização coletiva em puxirões; o processamento dos alimentos; a caça e a pesca; a construção de canoas e casas de pau-a-pique; o ofício do canoeiro; a confecção de utensílios domésticos para diversos fins; o ofício das parteiras e dos benzedores e curandeiros; o ofício de capelão.São saberes acumulados e transmitidos ao longo do tempo, revelando uma forte interação entre as pessoas, e entre as pessoas e a natureza.

Os bens culturais desta categoria encontram-se difundidos na maioria das comunidades participantes do projeto, com destaque para o Modo de Fazer Roça, presente em todas. Nota-se uma tendência à diminuição da atividade agrícola, provocando impactos em toda a cadeia: nas formas coletivas de organização do trabalho, que estão assentadas em relações de parentesco e compadrio, nos bailes, danças e músicas associados às atividades de colheita, nos saberes associados aos recursos naturais, no processamento dos alimentos e na confecção dos utensílios utilizados no processamento. Nesta categoria, foram inventariados 201 bens

:: A categoria das Celebrações inclui as festas comunitárias, religiosas ou não, que envolvem uma significativa mobilização coletiva ou que possuem profundidade temporal na comunidade, sendo identificadas como eventos cíclicos que integram diferentes gerações, atualizam laços familiares e intercomunitários. As celebrações são uma importante forma de apropriação dos territórios. As celebrações identificadas revelam a forte influência do catolicismo na vida comunitária dos quilombos.

Neste contexto, destacamos a importante função das procissões, dos mastros e dos festeiros na condução dos cultos religiosos. Com exceção de Cangume, onde funciona um centro espírita, todas as comunidades celebram seus santos padroeiros: São Sebastião (Porto Velho), Santo Antônio (Mandira e Bombas), São Miguel Arcanjo (Morro Seco), São Pedro (Maria Rosa e São Pedro), Nossa Senhora Aparecida (Praia Grande, Sapatu, Nhunguara e Galvão), Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos (Ivaporunduva), São José (Pilões), Santa Catarina (Pedro Cubas e Pedro Cubas de Cima), Santa Luzia (Sapatu), São Vicente de Paula (Abobral). Além do padroeiro, outras datas de santos são celebradas nas comunidades.

A Corrida da Bandeira do Divino é a celebração mais difundida nos quilombos, e ocorre entre os meses de maio e julho. Em muitas comunidades, tem aumentado o número de casas onde a bandeira é negada, devido à conversão das famílias para religiões evangélicas. Outra mudança é que apenas em dois quilombos a bandeira circula com o acompanhamento musical e a cantoria que lhe são características. Nesta categoria foram inventariados 107 bens.

:: Foram consideradas Formas de Expressão as manifestações culturais e artísticas de música, canto, dança, brincadeiras, incelências de funeral, orações e diversos gêneros de literatura oral: causos, contos, lendas e narrativas míticas onde figuram personagens como Negrinho D`água, Saci-Saperê, Boi Tatá, Corpo Seco, Curupira, Mãe de Ouro, Lobisomem, Bruxa e outros. Os bens culturais classificados como Formas de Expressão são os que mais se encontram ameaçados pelas mudanças em curso nas comunidades quilombolas do Vale do Ribeira. Muitas delas existem apenas na memória dos mais velhos. Cabe destacar a integridade da Romaria de São Gonçalo em duas comunidades de Iporanga e o desaparecimento completo deste bem cultural nas comunidades de Eldorado, Iguape e Cananéia. Nesta categoria foram inventariados 101 bens

:: A categoria dos Lugares envolve as localidades, dentro do território, que possuem importância para a memória histórica das comunidades, para a vida cotidiana e para a imaginação artística e lúdica.Como estão localizados dentro dos limites territoriais dos quilombos, cada comunidade identifica os “seus” lugares. Apenas os rios que perpassam diversos territórios aparecem como bem cultural compartilhado em mais de um quilombo. É o caso do Rio Ribeira de Iguape, identificado como bem cultural por seis comunidades.

A identificação dos lugares revelou um aumento da consciência das comunidades sobre a importância histórica e cultural destes espaços, e tende a fortalecer os vínculos entre cultura e território. Na descrição destes bens culturais emergem as versões locais de eventos ocorridos no passado. São histórias que pertencem a um repertório restrito de pessoas, mas que compõem a trajetória das comunidades negras rurais e a própria história do Vale do Ribeira. Nesta categoria foram inventariados 85 bens.

:: Os bens culturais classificados na categoria Edificações são as construções que abrigam relações sociais e engendram saberes e práticas. O valor patrimonial destas edificações não decorre de suas características artísticas ou arquitetônicas, mas da importância que elas têm para a existência de outros bens culturais. Assim, as igrejas são importantes para as celebrações, como os tráficos de farinha o são para o processamento da mandioca, para o ofício de carpinteiro e também estão ligados ao trabalho na roça. Os centros comunitários, por sua vez, são espaços importantes para as reuniões, festas, formas de expressão variadas, quermesses e bailes da comunidade, e assim por diante.

Foram identificadas algumas edificações em ruínas que representam marcos históricos da ocupação no Vale do Ribeira e possuem valor arqueológico indiscutível. É o caso da Casa de Pedra, em Mandira, e de valas de pedra construídas em pequenos leitos de rio para atividade de mineração. Nesta categoria foram inventariados 41 bens.

Ao mesmo tempo em que traz à tona a riqueza cultural quilombola, com centenas de bens culturais identificados, o inventário mostra que está em curso um rápido processo de transformação no modo de vida das comunidades, marcado pela não transmissão dos conhecimentos tradicionais às novas gerações e uma tendência à sua substituição pelos valores e saberes veiculados, principalmente, pela escola e a televisão.

Relexões sobre mecanismos de proteção

Na parte da tarde, Simone Toji, do Iphan de São Paulo e Claudia Vasques, da Coordenação de Registro do Departamento de Patrimônio Imaterial do Iphan de Brasília apresentaram a política de salvaguarda de bens culturais imateriais. Considerando o inventário como a primeira etapa no processo de patrimonialização, o foco recaiu sobre as ações e procedimentos de registro e fomento.

Selmo Norte, do Departamento de Patrimônio Material do Iphan e coordenador do GT de Quilombos do órgão em Brasília considerou evidente a importância da aplicação do INRC nas comunidades do Vale do Ribeira. “Não resta dúvida de que a conclusão do inventário é de grande importância para a melhoria da qualidade de vida dessas populações e aprimoramento da relação com seus territórios, além de bem orientar as futuras decisões sobre o respectivo trabalho de proteção patrimonial, a ser oportunamente discutido.

Em seguida, os quilombolas se dividiram em grupos de trabalho nos quais refletiram coletivamente sobre a importância de criar mecanismos de proteção e fortalecimento do patrimônio cultural. Os cinco grupos de trabalho consideraram que:

1) é importante para as comunidades quilombolas obter o registro de bens culturais;

2) é necessário promover a difusão dos resultados do inventário cultural por meio de site, publicações, vídeos e exposições;

3) deve-se buscar formas de fomento às atividades, grupos culturais e celebrações como forma de retomar bens culturais perdidos e fortalecer bens culturais íntegros.

No final, as demandas apresentadas selaram a necessidade de dar continuidade aos trabalhos relacionados ao patrimônio cultural e de elaborar planos de ação para a sua salvaguarda.

<O Observatório Quilombola publica todas as informações que recebe, sem descartar ou privilegiar nenhuma fonte, e as reproduz na íntegra, não se responsabilizando pelo seu conteúdo.>

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