• (21) 3042-6445
  • comunica@koinonia.org.br
  • Rua Santo Amaro, 129 - RJ

Notas sobre o IV Encontro da Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas

Na quinta-feira, quatro de agosto de 2011, o segundo dia do IV Encontro Nacional da Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (CONAQ), realizado seis anos depois do III Encontro, permaneceu latente nos espaços de debate e construção coletiva a tensão existente na dinâmica de condução do encontro e de participação quilombola. Uma tensão que é reveladora das particularidades deste movimento, sobre os quais seria importante refletir.
 
A realização de eventos como esse da CONAQ, que tem o objetivo de reunir quilombolas de todo o país para pensar a efetivação e proposição de políticas públicas, assim como pensar a própria estrutura de organização das comunidades quilombolas em nível nacional, implicando o deslocamento destas populações, moradoras de comunidades que são desfavorecidas frente o acesso à transporte, à ausência quase absoluta de escolarização e, em geral, de outras experiências de participação em eventos políticos, requer um caráter de preparação especialmente complexo.
 
Eventos como este, quando promovidos por outros movimentos sociais, de classe ou sindicais, é composto por delegados eleitos pelas bases do movimento, preparados pelas organizações locais e estaduais para o debate, socializados nas regras de participação do evento, e que, visando uma maior qualidade na representação, a coordenação junto aos delegados eleitos acertam entre si, em plenária no início do evento, um tempo longo ao debate coletivo e aprovação das normas de participação, dos processos deliberativos e princípios, constados no regimento interno do encontro. Percebeu-se que a organização deste IV Encontro Nacional da CONAQ também seguiu esses preceitos organizativos e de participação.
Sem esses espaços de diálogo e de preparação, tanto dos delegados quanto da organização do evento, são grandes as chances de se desencadearem no processo conflitos e de, até mesmo, não atingir a realização dos objetivos desejados, emergindo sentimentos como insatisfação por não se sentir contemplado no número de falas e nos tempos de fala estabelecidos, insatisfação pelo cansaço e pela dinâmica estabelecida, insatisfação pela pouca compreensão dos objetivos e da metodologia utilizada, insatisfação por poucos dominarem as ferramentas de participação estabelecidas. Uma parte das tensões deste primeiro dia do IV Encontro Nacional da CONAQ parece estar associada justamente às dificuldades do movimento em dar conta destes procedimentos. Uma parte das falas dos organizadores, na mesa da abertura do terceiro dia, refletiu um pouco sobre tais tensões, explicitando dificuldades de realização do encontro.
 
Dentre algumas dificuldades de organização do encontro, destacamos a mesa sobre Políticas Públicas para as Comunidades Quilombolas, que teve como convidados representantes da Fundação Cultural Palmares, INCRA, MDA, SEPPIR e um Professor da UFRJ com apresentação da pesquisa “O orçamento das políticas de igualdade racial: as comunidades quilombolas”. Essa era uma mesa estratégica no encontro, pois centrava nela a possibilidade de diálogo franco com os representantes de órgãos governamentais sobre os vários problemas enfrentados pelas comunidades quilombolas frente à ausência quase total de eficiência e eficácia das políticas e programas governamentais destinados a essas populações.
 
Os representantes da mesa, governamentais, ao invés de centrar a fala nos objetivos a que a mesa se propôs, tangenciaram o discurso e fugiram ao objetivo proposto inicialmente a partir de instrumentos diversos, dentre eles: teorizações sobre significados de políticas públicas, falas emocionadas sobre a presença de mulheres e jovens no encontro, narração de casos engraçados vivenciados no trabalho junto à lideranças presentes na plenária e apresentação rápida de resultados dos programas, discurso sobre o não uso dos recursos disponibilizados e propostas inflamadas de apoio ao movimento.
 
A pouca ou nenhuma estratégia aparente de mediação da mesa, somada à indignação de alguns quilombolas na plenária, em função da mesa não atingir os objetivos propostos pelo encontro, não dando respostas às questões reais das comunidades, acabou por gerar grande tensão, com interrupções e críticas da plenária. Isso culminou no desvio da atenção da causa do problema – ausência de conteúdo das apresentações – para as consequências dela – incômodo, indignação da plenária. Este fato fomentou conflitos na própria plenária e entre ela e a organização do evento: alguns liam o burburinho decorrente da indignação generalizada como “falta de educação”, outros o utilizaram, dentro de uma posição que se mostrou sistemática e articulada, para buscarem deslegitimar a própria CONAQ como organizadora legítima do movimento. O tempo gasto para amenizar as tensões e a desmobilização gerada inviabilizou um possível debate sobre o tema da mesa.
 
Diante disso, cabe a seguinte pergunta: será que a dinâmica e a forma de organização dos encontros quilombolas devem seguir o mesmo modelo dos processos ditos democráticos já instituídos e legitimados pelos movimentos sociais, a exemplo dos movimentos sindicais e partidários? A forma como encontros como esses são pensados é adequado ao modo de organização temporal e discursiva quilombola? Evidentemente não estamos sugerindo que exista uma “racionalidade quilombola” ou algo do gênero. Nem mesmo estamos sugerindo que os quilombolas formem uma unidade, que possamos reduzir a uma imagem simples, o que seria incorrer em uma espécie de “primitivismo” que só alimenta o discurso deslegitimador contra o movimento. De fato, em plenária havia uma enorme variedade de experiências de percursos de mobilização política. Porém é necessário reconhecer que a maioria dos participantes quilombolas encontrou neste evento da CONAQ, assim como tem encontrado em outros espaços de “participação” e de “representação” formal, grande dificuldade. Não seria necessário, portanto, desnaturalizar esse modelo de participação e de representação? Seria absurdo trabalhar no plano do instituinte, produzindo e testando outras “metodologias”, de modo a ampliar a qualidade da participação nestes espaços e para além deles?
 
O GT de Educação, neste mesmo encontro, por exemplo, recusou a metodologia proposta pelas assessorias, de dividir o grande grupo em grupos menores de discussão, que as relatariam para o grande grupo, a fim de realizarem uma relatoria sintética. Reivindicaram uma dinâmica de trabalho que fosse mais circular, coletiva e horizontal. Os próprios quilombolas acusavam a proposta de encaminhamento de serem orientações ainda obedientes a uma racionalidade escolar, disciplinar e urbana. É verdade que este tipo de crítica já vinha de quilombolas que, tendo escolarização e/ou formação via movimentos sociais, podiam se opor a ela. É verdade que, fora do contexto, esta postura pode se assemelhar a uma espécie de auto-exotização, uma simples estratégia de maximizar diferenças, mas o fato é que, fosse qual fosse a sua formulação, ela contemplava e expressava a posição dos outros quilombolas presentes. Pareciam ecoar, enfim, a afirmativa de Lévi-Strauss, que descrevia a existência de modos alternativos e legítimos, nem mais, nem menos racionais e eficazes de organizar e refletir sobre o mundo, desde os chamados povos primitivos às sociedades modernas. Ele apontava no modelo ocidental de reflexão a necessidade de fragmentar. Conforme Descartes propôs e sistematizou, para resolver uma dificuldade, o ocidental precisa dividi-la em tantas parcelas quanto forem necessárias, para melhor resolvê-las. Uma tendência que separa o sensível do inteligível, o pensamento dos corpos, o raciocínio da dança. Por outro lado, porém, no enorme acervo que modos de pensar alternativos ao ocidental, o autor reconhecia a tendência oposta, que só reconhecia como válida uma abordagem que fosse integrada e total, que construísse uma compreensão também por meio das sensações. Como, aliás, ele mesmo apontava, a ciência contemporânea tende a fazer, quanto mais ela se afasta do século XIX.
 
Por que não pensar encontros quilombolas a partir de estratégias de organização mais amplas que expressem valores manifestos nas comunidades quilombolas – ancestralidade, tradição, família, corporeidade, valorização dos saberes tradicionais, comunitários e solidários, -, presentes nas relações educativas cotidianas e numa forma de se fazer política à moda quilombola?
Talvez uma das primeiras lições destas reflexões acerca deste IV Encontro Nacional da CONAQ seja justamente questionar o modelo de organização que está sendo oferecido a estas comunidades, e que, em lugar de favorecer, pode estar dificultando a sua participação e impedindo sua representação. A fim de realizar a democracia é preciso reinventá-la e, neste caso, por meio da atenção à lógica política, cultural e organizativa das comunidades quilombolas. Cabe ao movimento e à rede de apoiadores sofisticarem suas ferramentas de apoio, mobilização e intervenção. É preciso refletir sobre em que medida a diferença que marca a existência destes grupos pode ter um alcance mais amplo do que aquele para o qual estamos inicialmente preparados. Tais particularidades podem ter um impacto para além do plano das políticas e da relação com o Estado, atingindo também e positivamente os nossos modos de conceber a participação, a representação e, enfim, a educação.
 
 
[1] José Maurício Arruti – Historiador, Antropólogo.
 
[2] Suely Noronha de Oliveira – Mestranda em Educação PUC-RJ. Bolsista do Programa Internacional de Bolsas da Fundação Ford.
 
 
 
<O Observatório Quilombola publica todas as informações que recebe, sem descartar ou privilegiar nenhuma fonte, e as reproduz na íntegra, não se responsabilizando pelo seu conteúdo.>
 
 

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Pular para o conteúdo