Arte e memória da negritude
Unidos pelo interesse comum na ancestralidade africana, o coletivo de artistas State of L3 está desenvolvendo um projeto ligando Brasil, Senegal e Holanda. Os primeiros resultados deste diálogo ultramarino puderam ser vistos em maio deste ano na Bienal de Dakar. Agora estão em Amsterdã na exposição ‘Mémoires de la Négritude’, na Galerie 23, e a partir do dia 10 de julho na mostra ‘Modernity & Aesthetics of the New Black Atlantic’, no Smart Project Space, também na capital holandesa.
O projeto nasceu quando Antonio Jose Guzman, artista panamenho radicado na Holanda, iniciou uma pesquisa sobre seu próprio DNA para a elaboração de um trabalho artístico envolvendo genética, gravidade e temporalidade. Do encontro com o fotógrafo e cineasta pernambucano Felipe Peres Calheiros e com o artista plástico senegalês Abdulaye Armin Kane surgiu o coletivo L3, que depois se expandiu com a colaboração de vários outros artistas nos três países.
“Desde 2008 começamos a trocar figurinhas. Guzman foi a Recife e iniciamos um trabalho junto com uma comunidade chamada Xambá, que é o primeiro quilombo urbano do Nordeste, em Olinda. Lá há um terreiro de Candomblé e nós começamos a trabalhar com jovens e a produzir material, principalmente na área de audiovisual”, conta Felipe Calheiros, que veio a Amsterdã para a abertura da exposição na Galerie 23 e também para uma participação especial do coletivo no festival Keti Koti – evento que rememora a abolição da escravidão no Suriname e no qual o L3 construiu uma instalação simulando um barco onde as pessoas podiam entrar e interagir com uma projeção.
Barco voador
Na Galerie 23, o grupo expõe fotografias, vídeos, pinturas e instalações, entre elas um grande ‘barco voador’ que será montado também no Smart Project Space. O barco é um dos ícones centrais no projeto – símbolo da ligação entre os três continentes e do transporte entre África, Holanda e Pernambuco no período em que o estado esteve sob domínio holandês, no século 17.
Pontuado pela filogeografia, o L3 – nome que faz referência a um dos haplogrupos do DNA originários da África – mescla a pesquisa artística à busca pessoal de cada um dos participantes por sua história e linhagem genealógica.
“Nosso objetivo é complexo, na medida em que tem muita gente participando, mas acho que a congruência acontece nesta busca dos laços identitários entre todos que compõem o projeto, no que se refere à presença africana em nós mesmos”, explica Calheiros. ”Isso tudo tem uma relevância política, uma relevância artística, e não há muito limite pra esta pesquisa andar.”
Tankalé
Além das exposições já realizadas, há outras programadas na Bélgica (Antuérpia), Dinamarca (Copenhague), e convites para expor nos EUA (Nova York) e Brasil (São Paulo e Recife). O State of L3 também tem produzido muito conteúdo para a web, que é o canal de comunicação entre os artistas e onde as trocas são realizadas.
No Brasil o grupo ainda é ligado ao projeto ‘Tankalé’, em Pernambuco, que estimula a população quilombola a realizar seus próprios registros audiovisuais. “Este projeto se propõe a oferecer à população quilombola condições de produzir seus próprios documentários, de expressar como vivem, registrar como eles próprios veem suas vidas, e registrar um problema político que o Brasil enfrenta, que é a diminuição e a expulsão dessas pessoas de suas terras”, comenta Calheiros.
Descendentes dos negros que resistiram à escravidão, os quilombolas formam cerca de 1300 comunidades reconhecidas no Brasil. Mas apesar da constituição prever que têm direito à devolução de suas terras, até hoje muito pouco foi feito pelo governo brasileiro. “Apenas 5% destas comunidades começaram um processo de regularização fundiária. Então, de certa forma, o L3 está associado também a esta causa política do movimento negro no Brasil, principalmente pela devolução do território que é de direito do povo quilombola.”
Ancestrais
Por se basear na pesquisa da ancestralidade, o projeto também é marcado por importantes descobertas dos artistas em nível pessoal.
“No Brasil a gente tem um registro historiográfico que compromete muito o conhecimento da ancestralidade africana. É muito fácil você saber quem era o seu avô português, saber quem era seu tataravô espanhol. Mas para você saber quem era a sua avó indígena ou algum ancestral negro você tem uma profunda dificuldade”, destaca Calheiros.
“O que eu pude viver nestes últimos meses foi um reencontro com parte da minha vida, da minha ancestralidade, que não estava bem contada. E surpreendeu esta dificuldade de identificar estes ancestrais negros e índios na minha família. Isso pra mim foi bem relevante, porque eu tenho um bisavô negro que sempre foi identificado como branco, como filho de portugueses, e não era, e só remoendo esta história genealógica eu fui encontrar. Também descobri um tataravô que era do movimento abolicionista. É uma experiência muito marcante pra todo mundo. Acredito que estas produções que já estão na web, e virão outras, devem muito a este parar pra refletir sobre a nossa ancestralidade.”
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