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Bispo de Roraima fala sobre a luta das comunidades tradicionais no país

‘Tributaram aos índios uma conta que não é deles’, afirma bispo de Roraima

Por Michelle Amaral da Silva

Dom Roque Paloschi afirma que o voto, os argumentos e a clareza do ministro Ayres Britto só confirmou a práxis dessas comunidades indígenas, que, agredidos, atacados, de maneira criminosa, procuraram seguir o caminho da lei e da não-violência

Gaúcho de Lajeado, Dom Roque Paloschi é bispo de Roraima há três anos. Ele, juntamente com a Igreja que está em Roraima, acompanha a luta das comunidades indígenas da Terra Indígena Raposa Serra do Sol. Na conversa que teve com a IHU On-Line na tarde da última sexta-feira, Dom Roque, emocionado, fala sobre o julgamento em torno da demarcação da terra de Raposa Serra do Sol, e sobre o conflito entre índios e arrozeiros da região. Para ele, o voto, os argumentos e a clareza do ministro Ayres Britto só confirmou a práxis dessas comunidades indígenas, que, agredidos, atacados, de maneira criminosa, procuraram seguir o caminho da lei e da não-violência.

IHU On-Line – Como o senhor avalia, até agora, o julgamento do caso Raposa Serra do Sol?

Dom Roque Paloschi – Nós avaliamos com muita serenidade porque nós, cristãos, das comunidades indígenas e da Igreja do Brasil, temos plena confiança no Supremo Tribunal Federal, que deverá consolidar e confirmar a Constituição Brasileira. O Estado brasileiro quis dar direitos aos seus filhos; direitos de reconhecimento da sua organização, do seu modo de viver, da sua cultura, dos seus costumes, das suas línguas. Tirar isso hoje é negar e retalhar a Constituição. Por isso, temos muita confiança de que os ministros do Supremo Tribunal Federal irão confirmar aquilo que é consagrado na Constituição Cidadã de 1988, que abriu uma grande perspectiva aos povos originários, aos quilombolas, aos mais sofridos e desprezados desse país.

Qual a importância da postura do ministro Ayres Britto?

A postura do ministro Ayres Britto deu para todos nós, brasileiros e brasileiras, mas também para o mundo, esse sentido de um reconhecimento daquilo que é a lei. A lei é para todos e a Constituição rege isso: o respeito à vida, à historicidade, aos costumes das populações originárias do país. E ele traz expressões magistrais, que deveríamos gravar no nosso coração, num país de tanto preconceito e discriminação. O ministro do Supremo Tribunal Federal falou, com autoridade, que, se os índios estão nessas fronteiras, foi porque foram empurrados, chutados, rejeitados pela sociedade vigente e foram os grandes defensores do território nacional. Ele usa uma bonita frase: A questão do indígena com a terra é como a carne e a unha, como o olho e a pálpebra. Um não pode viver separado do outro. Não se pode separar a vida da comunidade indígena da sua territorialidade. As terras indígenas nem são dos índios, eles apenas as usufruem, porque são propriedade da União. Percebemos que o grande grito, o grande apelo das comunidades indígenas, é justamente em razão da ausência do Estado. Digo isso porque nós podemos testemunhar. A grande maioria dos prédios escolares dentro da terra indígena Raposa Serra do Sol é construída pelos próprios indígenas, sem recursos governamentais. O mesmo ocorre com os postos de saúde. O que mais podemos esperar? Tributaram aos índios uma conta que não é deles. Os índios não podem assumir uma conta que eles não fizeram, lembrando as palavras do ministro. O Estado brasileiro precisa pagar essa dívida com os povos originários dessa terra. Vamos deixar que os índios nos catequizem também!

Como as comunidades indígenas têm se manifestado em torno dessa polêmica?

As comunidades indígenas têm lutado de maneira evangélica. Enquanto o mundo inteiro reverencia Martin Luther King e Gandhi, nós, aqui no Brasil, podemos dizer que as comunidades indígenas de Raposa Serra do Sol, ao longo de mais de 30 anos, viveram o caminho da não-violência. E a história tem provado isso. São mais de 30 lideranças das comunidades indígenas assassinadas, malocas incendiadas, roças destruídas, estradas e pontes interrompidas ou queimadas. E nunca, nunca mesmo, as comunidades indígenas reagiram com a violência. Pelo contrário. Seguiram sempre o caminho da não-violência, confiando na lei e na justiça. Se não é na justiça humana, é na justiça de Deus. Podemos dizer com muita serenidade que a grande maioria dessas lideranças são movidas pela força do Evangelho, por uma vida de oração, uma vida sacramental nas suas comunidades. Missionários continuam sendo atacados, agredidos, em público, mas jamais se afastaram das comunidades indígenas. Nunca abandonaram a fidelidade à cruz do Senhor. Não passamos dois dias sem um ataque pela imprensa local em relação ao trabalho da Igreja.

As comunidades indígenas tiram, então, força da fé para continuar lutando?

Tiram força de uma vida no Evangelho, de oração, de participação no sacramento, tiram força da consciência de que a vida vem de Deus e não pode ser destruída pela ganância, pelo dinheiro, daqueles que, em nome do progresso, não respeitam ninguém.

Quais as expectativas das comunidades indígenas em relação a esse julgamento? As esperanças aumentaram depois desse voto do ministro Ayres Britto?

Evidentemente que o voto, os argumentos e a clareza do ministro Ayres Britto só confirmou a práxis dessas comunidades indígenas, que, agredidos, atacados, de maneira criminosa, procuraram seguir o caminho da lei. Ao longo desses mais de 30 anos, não há um registro policial de um ataque a um fazendeiro, a um arrozeiro, a um agente governamental. São comunidades profundamente voltadas para essa nova sociedade, a civilização do amor, tão acalentada no coração de Paulo Suess, tão difundida por João Paulo II. Essas comunidades têm dito não à cultura da morte e da violência, têm dito sim à vida, que é dom de Deus e precisa se tornar bênção para esse mundo. Que bom que podemos ser testemunhas hoje dessa vitalidade que brota do coração dos pobres, daqueles mais rejeitados e desprezados, daqueles mais enxotados desse país: as populações indígenas e negras. Que bom que a Igreja e a CNBB sempre foram implacáveis na defesa dos pobres. No dia 27 de agosto, fez dois anos da morte de Dom Luciano Mendes de Almeida. Nós, de Roraima, temos essa dívida a esse homem que, certamente, do céu, continua intercedendo para que verdadeiramente a justiça seja feita. A história tem suas coincidências.

Quais as possíveis conseqüências em caso de cancelamento da demarcação das terras?

Não posso responder pelas comunidades indígenas, mas pelo convívio com elas, pelo que os missionários sentem no coração dos índios; eles vão continuar lutando. Vão enfrentar todos os processos que o governo brasileiro, através do STF, exigir, se isso eventualmente acontecer. Porque, se há acusação de laudos fraudulentos, vamos enfrentar todos os novos caminhos, fazer de novo.

As comunidades indígenas não vão se entregar…

Não, não vão mesmo. Aliás, já dizia Pe. Antônio Vieira que a população indígena desse país não se entrega. Quando menos se espera, renasce alguma coisa. Pode ter certeza: eles nunca vão entrar no caminho da violência e vão caminhar de acordo com a lei. Isso é bonito, eles respeitaram a lei sempre. Pelo número em que estão, poderiam fazer qualquer coisa. Mas eles defendem nossas fronteiras e vestem a camisa do Brasil, da brasilidade, do amor à terra. Esse país deve se curvar aos povos originários dessa terra.

Como está a repercussão desse caso pelas ruas de Roraima, entre as pessoas comuns?

Há evidentemente uma grande revolta. O jornal local de hoje mostra os políticos, o empresariado assustado e movendo uma grande campanha nacional contra o voto do ministro-relator. O Brasil inteiro e o mundo ouviram a expressão do líder dos arrozeiros, que, com arrogância, disse, em pleno Supremo Tribunal Federal, desafiando o Supremo, que ele agradecia pelo fato de que ministro não tinha mandando prendê-lo nem o mandado fuzilar. Imagina o que uma pessoa dessas faz com um índio? O que um homem desses é capaz de fazer? O que mais se pode esperar?

Fala-se numa solução que encontre um meio-termo nessa polêmica. O senhor consegue imaginar esse meio-termo? Em que sentido?

Vou lhe devolver uma pergunta: você está disposta a viver meia vida? Esse é o entendimento constitucional. Ayres Britto não inventou nada. Ele pautou seu voto na constituição desse país. Eu posso ser atrapalhado, porque sou um agricultor, não sou um homem de estudos, mas eu pergunto se há meia vida. Há meia cama? Ou você tem a vida plena, ou você… Será que o Estado brasileiro vai premiar os que fabricam bombas, que desafiam a ordem? O meio-termo é esse? Na minha opinião o meio-termo é o genocídio das comunidades indígenas.

Como a sociedade brasileira tem se manifestado a favor dos povos indígenas?

Somos profundamente gratos pela solidariedade manifestada pelas dioceses, pelas prelazias, das congregações religiosas, das comunidades cristãs, das pessoas de boa vontade, que estão tão próximas, tão vizinhas a esta luta dos povos indígenas do Brasil e, de modo particular, de Raposa Serra do Sol. Queria dizer muito obrigado por essa vigilância, pela oração, pela solidariedade, pela proximidade e, sobretudo, pela confiança nos passo que a Igreja daqui tem dado no sentido de viver sua missão junto aos pobres de Roraima.

< O Observatório Quilombola publica todas as informações que recebe, sem descartar ou privilegiar nenhuma fonte, e as reproduz na íntegra, não se responsabilizando pelo seu conteúdo.>

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