Territórios Negros nº 33
“A luta por direitos não pode restringir-se, portanto, à luta pela produção de leis. É preciso monitorar suas condições de efetivação, tendo em conta tais planos de insegurança dos direitos: orçamentário, normativo e jurídico.”
Este é um trecho do editorial do informativo Territórios Negros nº. 33, que, como de costume, faz uma análise da conjuntura quilombola no País.
Na seção “Um pouco de História”, o tema escolhido foi a Roda dos enjeitados, que acolhia crianças abandonadas e tornou-se um recurso para livrar os bebês negros da escravidão. A “Fala Quilombola” deste número ficou a cargo de Moizes Souza e João Ramos, membros da diretoria da Associação do quilombo de Santa Rita do Bracuí; enquanto que a seção “Um território” enfoca a comunidade de Picadinha, no município de Dourados, MS.
Este informativo Territórios Negros reúne ainda as notícias mais relevantes dos meses de março e abril sobre a temática quilombola.
Leia e baixe para o seu computador clicando em http://www.koinonia.org.br/tn/38_TN33.pdf.
Leia a seguir o editorial na íntegra:
Em 1831 o governo imperial brasileiro, por pressão do Estado inglês, promulgou uma lei contra o tráfico de escravos no País. Naquela época, como hoje, o Estado brasileiro esforça-se por adotar leis que o façam aceitável entre os países desenvolvidos.
Consta que foi esta lei que motivou a criação da expressão “Para inglês ver”, tornada tão popular entre nós. Por meio desta expressão o humor popular designa eventos, decisões e, muito frequentemente, leis destinadas a terem existência puramente formal, sem se realizarem ou sem serem executadas na prática. Se no passado isso significou proibir a importação de africanos como escravos, hoje isso implica adotar uma legislação progressista no plano dos direitos étnicos e raciais, além da legislação (ainda hoje) contra a escravidão contemporânea.
O dilema de ontem, porém, ainda é o de hoje: como fazer com que tais leis, tão progressistas, se realizem na prática. Atualmente contamos com muito mais controles sociais que os africanos e abolicionistas brasileiros do início do século XIX. As organizações populares, os meios de comunicação e um governo formalmente comprometido com a democracia fazem com que as pressões para a realização dos direitos formais sejam muito maiores hoje. Mas ainda assim, vivemos uma situação de insegurança dos direitos, isto é, uma situação na qual não temos certeza de que tais direitos serão efetivados. Os mecanismos que produzem tal insegurança são vários.
De um lado, o governo faz previsões orçamentárias generosas destinadas à implantação de políticas públicas, do que é exemplo o Orçamento Quilombola, anunciando-as com grande alarde. De outro lado, o governo simplesmente não gasta tal orçamento, executando parcelas mínimas das atividades previstas. De um lado, a legislação nacional inclui leis que estão entre as mais progressistas do mundo, por meio da assinatura de diversos acordos e convenções internacionais. De outro lado, no momento de realizar tais leis, o governo cria normas menores, internas às agências de Estado responsáveis por executar tais leis, que estabelecem processos demorados e repletos de obstáculos técnicos e administrativos, e de limitações conceituais. De um lado, a legislação nacional cria novas e importantes figuras de direito, como o conceito de “comunidades quilombolas”, que permite a emergência de novos movimentos sociais. De outro lado, quando os conflitos envolvendo tais movimentos chegam aos tribunais, os juízes reinterpretam tais conceitos de forma a restringir a aplicação de tais direitos, voltando atrás com relação à interpretação de outros juízes.
A luta por direitos não pode restringir-se, portanto, à luta pela produção de leis. É preciso monitorar suas condições de efetivação, tendo em conta tais planos de insegurança dos direitos: orçamentário, normativo e jurídico. Por isso é preciso ter cuidado com as avaliações sobre os resultados da Consulta sobre a Instrução Normativa do Incra, realizada em abril deste ano. Ela foi, de fato, uma conquista no campo do reconhecimento dos quilombos como legítimos interlocutores do Estado brasileiro. Mas o que se anuncia é a consolidação de uma norma que tem por função tornar a lei sobre quilombos apenas uma lei “para inglês ver”.
José Maurício Arruti
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