Inédito: Justiça vai a território quilombola e faz acordo por creche
Em ação sem precedentes no Espírito Santo e no País, a Justiça estadual realizou uma audiência de processo criminal no próprio território dos acusados, os quilombolas. Eles eram acusados pela Aracruz Celulose de roubo de eucalipto. Na audiência, a juíza propôs acordo para por fim ao processo, e a construção de uma creche e um posto médico.
A audiência foi realizada nesta quarta-feira (9). Segundo o presidente do Conselho Estadual de Direitos Humanos (CEDH), Isaías Santana da Rocha, o Movimento Nacional dos Direitos Humanos solicitou ao Tribunal de Justiça que a audiência fosse realizada em São Domingos, em Conceição da Barra, norte do Estado, onde moram os quilombolas acusados pela transnacional.
Houve o acordo, e a audiência do processo que tramitava na 1ª Vara Especial Criminal de Linhares, foi transferida para a comunidade, e realizada na escola local. A audiência foi presidida pela juíza Gisele de Souza Oliveira.
Os 44 processados pela Aracruz Celulose são descendentes dos negros feitos escravos no Espírito Santo. Suas terras foram tomadas pela transnacional Aracruz Celulose. Sem ter sequer onde plantar seus alimentos e sem trabalho, os quilombolas realizam o chamado “facho”, que é a catação de restos de eucalipto que não servem para produção de celulose.
A Aracruz Celulose obteve liminar da Justiça que impedia os quilombolas de continuar a catação dos restos de eucalipto nos municípios de Conceição da Barra e São Mateus, que formam o território quilombola de Sapê do Norte. Então, os quilombolas se deslocaram para Linhares para catar os galhos de eucalipto. Foram contidos pela milícia da empresa, a Visel, e pela Polícia.
E ainda foram processados. Na audiência judicial desta quarta-feira, os advogados da Aracruz Celulose, que antes tinham como foco o “roubo” de madeiras pelos quilombolas, passaram a centrar suas denúncias no desacato da ordem judicial.
Segundo relato de Isaías Santana, os quilombolas confirmaram a catação dos restos de eucalipto, mas não assumiram “culpa” pelo ato. Concordaram apenas que não acataram a ordem judicial.
Durante a audiência, a juíza Gisele de Souza Oliveira propôs o que tecnicamente é chamado de “composição judicial”, para acabar o processo. Sua proposta, que incluía a construção de uma creche e um posto médico para a comunidade quilombola em São Domingos, com apoio da prefeitura de Conceição da Barra, foi aceita.
Como parte do acordo, a prefeitura se comprometeu a fazer os projetos da creche e do posto médico, que serão discutidos com a comunidade. E que fornecerá o material de construção e dois pedreiros. Os quilombolas entrarão com a mão-de-obra. Pelo acordo, a creche e o posto médico estarão concluídos em 90 dias.
De acordo com o entendimento do presidente do Conselho Estadual de Direitos Humanos, o fato de a audiência ter sido realizado no território quilombola, há dez metros de um eucaliptal, permitiu à juíza e o promotor público ver a miséria em que foram lançados os quilombolas. O que certamente contribuiu para sensibilizá-los e levar a juíza a propor o acordo.
Isaías Santana informou que os quilombolas processados pela Aracruz Celulose foram incluídos no Programa de Proteção aos Defensores dos Direitos Humanos. Nele, os participantes são estimulados a manter a luta por seus direitos, sem se afastar da comunidade.
Empresa violenta – No seu processo de implantação, a Aracruz Celulose derrubou, só no Espírito Santo, 50 mil hectares de mata atlântica, destruindo toda a sua biodiversidade.
Usa, até hoje, as chamadas capinas químicas – um coquetel de agrotóxicos, com predominância de herbicidas e formicidas – nos eucaliptais. Os venenos contaminam a terra, a água, a fauna e a flora. E contaminam e matam os poucos moradores, como os quilombolas, que resistem em pequenas propriedades em meio aos eucaliptais.
O norueguês Erling Sven Lorentzen, idealizador e um dos maiores acionistas da transnacional, conseguiu seu intento no Brasil aliando-se às mais altas figuras da ditadura militar, como o general-presidente da República Ernesto Geisel, há 40 anos.
Usou os representantes dos militares no Espírito Santo, como os governadores biônicos (não eleitos pelo povo e nomeados pelo governo federal) Arthur Carlos Gerhardt Santos e Cristiano Dias Lopes. Gerhardt começou a preparar o terreno para o domínio da Aracruz Celulose, fundada em abril de 1972.
Arthur Carlos, à frente do Banco de Desenvolvimento do Estado, atual Bandes, no governo Christiano Dias Lopes Filho (final dos anos 60), foi quem fez toda a trama para entregar grande parte do território capixaba à Aracruz Celulose. A preço praticamente simbólico, as terras públicas ou assim consideradas pelo governo arbitrário foram vendidas a 10 décimos de centavos o metro quadrado (a moeda, da época, era ainda o cruzeiro).
Lorentzen empregou mão-de-obra bandida para tomar terras dos quilombolas: usou como seu principal testa-de-ferro o tenente Merçon, do Exército. No máximo, o militar consentia em pagar valores irrisórios aos que resistiam.
Os negros então foram forçados a abandonar cerca de 50 mil hectares em todo o Estado em favor da empresa. Vieram depois os plantios de eucalipto e a destruição ambiental em todo o território quilombola.
A empresa também tomou terras indígenas. O processo de ocupação do território indígena foi comandando pelo major PM Orlando Cavalcante, que pertencia ao Sindicato do Crime. O major era temido por torturar, antes de matar suas vítimas, e sua atuação foi também contra posseiros que ocupavam parte das terras indígenas no município de Aracruz.
Dos índios, a Aracruz Celulose tomou mais de 40 mil hectares de terras. O próprio governo federal, através da Fundação Nacional do Índio (Funai), reconheceu como terras indígenas 18.027 hectares e a empresa foi obrigada a devolver as terras.
A Aracruz também ocupou terras devolutas, que por lei devem ser destinadas à reforma agrária. Ainda mantém em seu poder a fazenda Agril, por exemplo.
< O Observatório Quilombola publica todas as informações que recebe, sem descartar ou privilegiar nenhuma fonte, e as reproduz na íntegra, não se responsabilizando pelo seu conteúdo.>