Mostra Quilombolas – Tradições e Cultura da Resistência em exposição a partir do dia 12
Dádiva do desconhecido
Por Liliane Pelegrini
Ao fotógrafo André Cypriano não interessam tanto as coisas fáceis, aquelas que ele já está cansado de conhecer. Quanto menos óbvio, aliás, melhor. A maior dádiva da vida é o desconhecido. Tenho um imenso prazer em buscar coisas que não conheço, determina André. Certamente é por isso que todos os seus grandes projetos são resultado de um processo em que o fotógrafo se embrenha em universos bem diferentes da São Paulo cosmopolita em que nasceu e da ilha no Estado do Rio de Janeiro na qual habita – o paraíso na Terra, como ele mesmo define. E aí estão Rocinha, imersão fotográfica na maior favela da América Latina, e o mais recente, Quilombolas – Tradições e Cultura da Resistência, resultado de parceria iniciada em 2005 com o geógrafo e pesquisador Rafael Sanzio Araújo dos Anjos, professor da UnB. Este último trabalho, aliás, rendeu livro e exposição itinerante, que, a partir de amanhã, entra em cartaz na Galeria Arlinda Corrêa Lima do Palácio das Artes.
André Cypriano nem poderia imaginar que o processo de feitura de Quilombolas pudesse ter tantos mistérios a descobrir. Claro que ele sabia – e queria – se surpreender, mas o que descobriu nos muitos dias de viagem por dez quilombos espalhados pelo Brasil foi muito mais do que o esperado. Ele imaginava, por exemplo, que encontraria certa unidade entre as diversas comunidades que visitou, por todas elas serem frutos da mesma história de escravidão e formadas por descendentes de africanos que um dia foram escravos no Brasil. Mas não foi nada disso. Cada um dos dez quilombos que visitei tem características bem próprias. E as peculiaridades têm a ver tanto com a origem e localidade territorial, quanto com problemas socioeconômicos. Alguns estão cientes da importância da preservação, outros, não. Um é cercado por urbanização, outro por tribos indígenas, outros pelo sertão, e alguns por fazendeiros roubando ou querendo roubar suas terras. Foi incrível ver como cada comunidade tem sua própria característica, seja cultural, hereditária ou de ensinamentos místicos, por exemplo, relembra André Cypriano.
O acesso a essas comunidades também causou surpresa ao fotógrafo. Ele já tinha noção de que os quilombolas costumam ser resistentes a pessoas que vêm de fora, por temer que elas interfiram em seus hábitos, em sua cultura e se aproveitem da sua trajetória e da sua luta. Teve um quilombo que eu pensei que conseguiria entrar com mais facilidade. Ele se chama Cafundó, fica em Sorocaba, perto de São Paulo, mais próximo da urbanidade. Cheguei lá e eles me rejeitaram de cara! Tentei convencê-los e fui o mais sincero que eu pude. Falei que era fotógrafo, que queria fotografá-los para um projeto autoral. Disse que eu não era jornalista, nem eu nem o Rafael, e que nós não estávamos ali para prometer nada, nenhum tipo de ajuda ou coisa do tipo. Fiquei mais de duas horas nessa negociação. Aí eles me disseram: ‘Olha, você foi tão sincero que pode entrar nas nossas casas’. Achei isso lindo, conta André.
Em outro quilombo, o fotógrafo teve que negociar por 24 horas para conseguir permissão para entrar e fotografar as pessoas e suas respectivas rotinas. Até nisso as comunidades se diferem. Em umas encontrei resistência, em outras, não, comenta ele, que esteve no já mencionado Cafundó (SP), em Itamatatiua (MA), Oriximiná (PA), Kalunga (GO), Mocambo (SE), Rio de Contas – Barra do Brumado (BA), Conceição dos Caetanos (CE), Tapuio (PI), Curiaú (AM) e Mumbuca (TO).
Cultura complexa
As fotos de André Cypriano e as pesquisas de Rafael Sanzio são um registro da complexidade da cultura quilombola. No Brasil, segundo dados do Centro de Cartografia Aplicada e Informação Geográfica da UnB, resistem 2.842 comunidades quilombolas espalhadas por todas as regiões do país. São consideradas como quilombos as comunidades que agrupam os descendentes de escravos africanos que mantêm as manifestações culturais de suas raízes e preservam o vínculo com seu passado.
Apesar de guardarem traços fundamentais da cultura brasileira, nem todos os quilombos têm a atenção que merecem por parte da sociedade e do governo. O fotógrafo André Cypriano e o pesquisador Rafael Sanzio perceberam isso na prática, durante as visitas às dez localidades. Foi incrível viajar com o Rafael porque descobrimos muitas coisas boas. Mas vimos também que as pessoas não fazem o que devem fazer pelos quilombos. A escravidão no Brasil é um passado recente, nós devemos nos sentir responsáveis até hoje e tentar reparar nossos erros, dar o verdadeiro valor aos negros, o valor que eles merecem. Eu me sinto culpado pela escravidão e acho que todo o Brasil deveria se sentir também. Temos que apoiar a cultura quilombola, dar condições de manutenção às comunidades. E não estou dizendo que eles têm que se urbanizar, se enquadrar na realidade urbana. Acho que eles são lindos como são, mas algo tem que ser feito. Um desenvolvimento com muito cuidado, avalia o fotógrafo.
Conjunto da obra
A mostra Quilombolas – Tradições e Cultura da Resistência, que o público belo-horizontino poderá ver a partir de amanhã, é composta por 40 fotografias em preto e branco, que enchem os olhos pela força das expressões registradas – uma marca constante na fotografia de André Cypriano -, além de composições que buscam – e alcançam – o olhar menos óbvio. Eu miro sempre na lua quando fotografo. Nem sempre consigo acertá-la. Mas sempre pego as estrelas. E estrelas também são muito belas. Fico orgulhoso de trazer um bom material para casa, comemora o fotógrafo, consciente do valor de seu trabalho – ele está no acervo museus do Brasil e do mundo e é considerado por publicações especializadas como um dos mais brilhantes fotógrafos brasileiros em atividade.
Além das fotos, a mostra ainda conta com seis ilustrações, três mapas e textos assinados pelo historiador Maurício Falavigna e pela pesquisadora e doutoranda em artes Denise Camargo, que divide a curadoria com Denise Carvalho, produtora cultural e diretora do projeto.
AGENDA – Exposição Quilombolas – Tradições e Cultura da Resistência, com fotografias de André Cypriano e cartografia de Rafael Sanzio Araújo dos Anjos. De amanhã a 2 de março, com visitação sempre de terças a sábados, das 9h30 às 21h, e aos domingos, das 16h às 21h, na Galeria Arlinda Corrêa Lima do Palácio das Artes (avenida Afonso Pena, 1.537, Centro – BH, 3236-7400). Entrada franca