Gilberto Gil destaca atividades desenvolvidas pelo Ministério da Cultura em 2007
O presidente pediu, eu fico
No final do ano passado, Gilberto Gil chegou a anunciar que deixaria o Ministério da Cultura para cuidar de sua voz, afetada pela quantidade de discursos da carreira política. Logo depois, porém, confirmou sua permanência no posto em 2008. Em entrevista aos leitores de ÉPOCA, Gil afirma que atendeu ao pedido do presidente Lula para ficar no ministério. Ele também comenta as medidas que tomou para melhorar o acesso à cultura no país, apesar de reconhecer as dificuldades. “Noventa e três por cento da população brasileira jamais foi a uma exposição de arte”, diz.
Por que o senhor decidiu não deixar o ministério? Um dos motivos alegados pelo senhor foi o problema com a sua voz. Como resolverá esse impasse?
Gil – Quando da reeleição do presidente Lula, pensei em deixar o Ministério porque, a principio, tinha pensado em servir os quatro anos para os quais havia sido convidado. Fiquei. O presidente e muita gente me pediu. Agora, um ano depois, há também o problema da minha voz. A ajuda médica indicou que, tomando os devidos cuidados, eu posso continuar o trabalho do Ministério e recuperar a qualidade vocal. Como, mais uma vez, o presidente e muita gente me pediu pra ficar, eu fico.
O que o levou a entrar na política e quais os principais problemas que enfrenta à frente do ministério?
Gil – Penso que todo processo de relacionamento com a vida em sociedade envolve a política. Isso é primário. Quanto a traduzir isso em disposição para o serviço público, não sei bem o que me teria levado a essa escolha. Talvez uma tendência a estar disponível para muitas coisas, uma característica marcante da minha vida. Sobre minha presença no Ministério da Cultura, fiquei especialmente motivado em contribuir com o governo Lula, que recebeu mandato do povo brasileiro para fazer mudanças de democratização, modernização e desenvolvimento do país, onde a cultura tem um papel fundamental. Já os problemas a enfrentar no Ministério vão desde decifrar os enigmas das escolhas e dos focos até estabelecer os meios para realizar as tarefas e comunicá-las ao governo e ao conjunto da sociedade.
Depois de seis anos como ministro da Cultura, o senhor poderia me dizer em que a cultura do país melhorou? Existem números oficiais que provem uma possível melhora?
Gil – O desempenho de uma instituição pública, incumbida de ajudar os processos culturais a serem desenvolvidos em múltiplas direções requeridas pela sociedade, pode ser traduzido pelos números e pela avaliação subjetiva da sociedade. Tanto os números quanto a avaliação do público mostram um relativo avanço do Ministério. Os números estão à disposição. Já a avaliação subjetiva é mais uma questão de interesse individual, cada um faz a sua e percebe a dos demais. Entre 2003 e 2007, o Ministério da Cultura ampliou em 130% os investimentos na área cultural, que passaram de R$ 706,2 milhões, em 2003, para R$1,6 bilhão, em 2007. Esses números incluem investimentos diretos do orçamento do MinC e os recursos de incentivo via renúncia fiscal. Hoje, finalmente temos indicadores culturais, graças a uma parceria inédita com o IBGE. Essa parceria já permite fazer uma tentativa de avaliação nacional de nosso trabalho e das outras instâncias de governo. Isso vai permitir que as políticas de cultura se consolidem e se qualifiquem no Brasil. Para citar alguns exemplos, estamos zerando o número de municípios sem bibliotecas no país, ainda em 2008, pretendemos instalar 631 novas bibliotecas, já temos os recursos garantidos para 300 e dependemos da votação do orçamento deste ano para garantir as demais. Em 2007, mais de 100 milhões de reais foram canalizados para a cultura por meio de seleção pública – um acesso democrático, sem decisão unilateral de empresas privadas, o que antes excluía boa parte da produção cultural brasileira. Conseguimos descentralizar a distribuição dos nossos recursos, aumentando os investimentos em todas as regiões. Chegamos a ampliar em 10 vezes os investimentos no Norte, por exemplo, sem para isso prejudicar a região Sudeste, que responde por grande parte da produção cultural do país. Atendemos áreas historicamente desassistidas pelo Estado, como as comunidades de periferia e as ações culturais no interior do país, as comunidades indígenas, ribeirinhas e quilombolas, entre outras. Também conseguimos atender os mais diversos setores da cultura, fortalecendo, por exemplo, a produção independente e os artistas que trabalham com inovação de linguagem. Enfim, estamos em construção e, como tudo que está em construção, com algo novo a cada dia, com ajustes permanentes do que propomos e do que nos é proposto, de acordo com a dinâmica do país e do mundo cultural. Nesta construção, podemos dizer que o Ministério ganhou visibilidade e hoje é respeitado, tem uma política de audiovisual consolidada, que deu novo fôlego à indústria cinematográfica brasileira, fortaleceu o apoio à produção experimental, que democratizou a produção e a circulação do conjunto das obras audiovisuais no país. Temos uma política de museus sendo encaminhada com êxito, só no ano passado, investimos R$ 160 milhões no setor, quase oito vezes mais do que o investido em 2002. Neste ano, continuaremos a fortalecer o sistema de segurança dos museus brasileiros. Também concretizamos uma política forte e abrangente de valorização do patrimônio cultural imaterial no país. Outro avanço que merece destaque é o Programa Cultura Viva. Em 2008, chegaremos a 2000 Pontos de Cultura no país. Apenas neste ano, investiremos R$104 milhões nesses Pontos. Esse é um número revelador, quando comparado com o nosso primeiro ano de gestão, pois o que investimos nessa ação equivale praticamente à metade do primeiro orçamento do MinC, em 2003.
Em que aspectos o Brasil necessita da TV Pública, visto que o país já possui uma, a chamada TV Cultura?
Gil – Uma TV pública nacional, independente do mercado e do governo, é algo que muitos países avançados já instituíram. Agora que o Brasil resolve finalmente priorizar a educação e cultura, chegou a hora de constituir uma instituição pública dessa natureza. A TV Brasil surge como um ator nacional não para substituir, mas para fortalecer essa rede pública, da qual a TV Cultura faz parte, assim como as tevês educativas, universitárias, legislativas/judiciárias e comunitárias. A TV Brasil vem para dialogar todos esses pólos, para fazer uma tevê pública plural, definida e apropriada pelo próprio público. Isso significa mais recursos para mais programas, mais qualidade, mais alcance, mais diversidade. No ano passado, abrimos um amplo processo de consulta pública, envolvendo encontros presenciais e uso dos mais diversos suportes para que a população brasileira diga como quer a sua tevê. O que o Fórum de TVs Públicas demonstrou é que todas as Regiões querem participar da produção de programas e não serem apenas consumidoras – o que é legítimo. Além disso, a TVE e a Radiobrás, do governo federal, eram estruturas insuficientes para atender demandas de investimentos em documentários, programação infanto-juvenil, cinema (para além dos blockbusters comerciais), além de programas educacionais e científicos, que só tendem a crescer, naturalmente. Um último aspecto que gostaria de destacar é que a TV Brasil nasce no novo contexto de revolução digital e vai se consolidar paralelamente ao fortalecimento da inclusão digital no país. Isso tem implicações culturais, legais e estratégicas para o Brasil. A radiodifusão clássica tem como objetivo um programa para milhões de espectadores, já a internet vem inverter essa equação, são um milhão de programas para um espectador. Essa mudança de lógica está presente no fortalecimento da nova tv pública brasileira.
Apesar da facilidade atual de acesso à cultura, principalmente por causa da internet, a maioria dos brasileiros ainda tem pouco ou nenhum acesso ao cinema, ao teatro e a outras atividades. O que o ministério faz para reverter essa situação?
Gil – A ampliação de acessibilidade aos bens e serviços culturais é hoje nossa principal meta. Apenas 13% dos brasileiros vão ao cinema a cada ano, 92% nunca freqüentaram museus e 93% jamais foram a alguma exposição de arte. Esse é ainda o cenário da escassez do acesso cultural no país, mas estamos trabalhando para mudar essa realidade. No final do ano passado, lançamos o programa Mais Cultura, que vai permitir, nos próximos três anos, investimentos de R$4,7 bilhões no setor cultural brasileiro. A iniciativa dará prioridade para as 11 regiões metropolitanas com maior índice de violência e para as regiões com baixos indicadores de saúde e de educação – como os quilombos, as reservas indígenas e as comunidades artesanais –, entre outras. O Mais Cultura atuará em 1.711 municípios, chegando a 41 milhões de pessoas. O programa tem como objetivo qualificar o ambiente social das cidades; gerar oportunidades de emprego e renda para os trabalhadores da cultura; viabilizar o micro, o pequeno e o médio empreendedorismo cultural; além de promover o consumo de bens culturais e assegurar os meios necessários à expressão simbólica e artística no país. Também estamos encaminhando junto com o governo a criação do Vale Cultura, que vai funcionar nos moldes do ticket refeição, mas voltado à programação cultural. Também estamos discutindo ação de barateamento dos transportes nos finais de semana para aumentar o acesso das populações periféricas às atividades culturais.
O que o senhor gostaria de fazer pela cultura que ainda não conseguiu fazer à frente da pasta?
Gil – O que mais me interessa fazer pela Cultura, como Ministro, é torná-la assunto estratégico para o governo e necessidade básica para a sociedade. Parcialmente, ambas as coisas foram feitas, mas muito parcialmente. Falta muito.
Como fica a questão ética quando o senhor viaja como ministro e recebe cachê como cantor?
Gil – Quando viajo como cantor estou licenciado do Ministério e todos os custos são pagos pela produção do trabalho artístico. Ao contrário do que dizem as falsas acusações, que fique claro, nunca recebi dinheiro público para fazer meu trabalho enquanto artista. Todas essas questões envolvendo a relação ministro/artista são reguladas por uma Comissão de Ética da Administração Superior.
A chegada do creative commons satisfaz apenas uma pequena parcela dos artistas. Há algum projeto por parte do Ministério que defina melhor a questão dos direitos autorais?
Gil – Na área autoral há pouca gente satisfeita no Brasil e no mundo. A tecnologia trouxe mil desafios e oportunidades. Desafios que, no Brasil, pela nossa lei antiquada e pelo sucateamento do Estado em governos anteriores, aumenta nossa responsabilidade. O modelo das Creative Commons não é uma política de Estado e nem uma iniciativa inventada pelo MinC, mas um movimento cultural mundial relevante, onde os autores, conscientes de seus direitos, distinguem usos com finalidades comerciais e não-comerciais. Um movimento cultural importantíssimo que recupera o direito do artista de permitir usos e acessos culturais, educacionais, sem deixar de viver de música. Mas o MinC vai além de um reconhecimento desse movimento: estamos retomando o papel do Estado de articular a política cultural autoral na busca do necessário equilíbrio que os direitos conferidos aos criadores devem ter com os direitos dos cidadãos brasileiros de acesso à cultura e ao conhecimento, bem como com o direito daqueles que investem na cultura, os chamados “investidores culturais. Enfim, estamos trabalhando nessa correção de desequilíbrios e na promoção de mais transparência no setor. Neste ano, vamos promover um Fórum, uma grande discussão pública sobre o assunto.
Como o senhor imagina seu futuro na política e na música?
Gil – Não imagino. Ou melhor, são muitas as imagens, de possíveis prosseguimentos ou de descontinuidade. Observo todas elas, mas não me atenho a nenhuma. Como tendência mais forte, prefiro me pensar fora da política e parcialmente ou moderadamente dentro da música.
Quais recordações Brasília deixará na sua vida?
Gil – Para além das impressões que eu já tinha da cidade como eventual visitante (arquitetura surpreendente, urbanismo exótico, sociabilidade misteriosa), junta-se agora a impressão de uma cidade-escritório, cidade-oficina, cidade-dormitório que a vida atarefada e sistemática do Planalto, da Esplanada e do Complexo Burocrático me dão. Existe, é claro, uma Brasília do lazer, do entretenimento, da juventude, da criatividade artística, etc. Mas eu tenho passado, aqui, parte do tempo trabalhando e parte do tempo indo trabalhar em outros lugares. A impressão atual mais forte é dada por esse aspecto.
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